domingo, 27 de junho de 2010

A curva - por Louis

Estava muito frio para continuar andando pela casa, o outono apareceu com cara de inverno esse ano, aquela chuva fina e terrível fazia tudo ficar cinza e sem vida. Só pessoas como Françoise, que vêem a vida em preto e branco, achariam aquela noite agradável.
Ela ficou acordada até tarde e toda vez que movia algo eu despertava de um sonho estranho, ai me acomodava novamente e pegava no sono. Falando em sonho estranho, toda noite era a mesma coisa eu sonhava com um cara gritando: Já era, Louis, já era. O lugar era desconhecido e comum ao mesmo tempo, parecia minha casa, mas era cercado de árvores e depois de gritar comigo ele corria, agarrava meu pescoço e eu não conseguia me mover, ficava cada vez mais sufocado, suave frio e acordava com os braços pequenos de Françoise ao meu redor, tentando me arrancar do pesadelo. Ela sempre perguntava a mesma coisa e eu contava o mesmo sonho.
Se dizia preocupada, os olhos grandes me sondando, procurando medo em mim até eu rir e dizer que era só um sonho para que ela se sentisse aliviada. Então, deitava em meu peito e adormecia, enquanto eu ficava com os olhos arregalados, olhando para o teto, tentando entender aquilo tudo. Por que toda noite o mesmo sonho?
- Louis, vou ligar a luz. Rapidinho!
- Tá!
Ela não precisava saber de todas as minhas preocupações, não agora. Permaneci de olhos fechados até que ela apagasse a luz e deitasse. Pulou por cima de mim, quase não pesava de tão pequena que era, veio para baixo das cobertas, bebeu a costumeira xícara de chá e grudou o corpo gelado no meu.
Sempre fazia a mesma coisa quando deitava, uma mão ia para baixo do travesseiro, com a outra pegava minha mãe esquerda e colocava sobre sua cintura, puxando-me para junto de seu corpo, para que eu a esquentasse.
Demorei umas duas horas para dormir, Françoise não parava de se mexer e parecia ofegante algumas vezes. A última vez que a vi acordar, se debateu como se eu a estivesse matando, segurei-a com mais força até se acalmar e dormi.
- Louis, Louis!
Ah, não é possível, filha da puta. Não vai me deixar dormir hoje.
- O quê?
Eu queria tanto dormir, mas ela não vai mais calar a boca agora.
- Tem gente aqui dentro.
DESGRAÇA, DESGRAÇA.
- Claro que tem, nós somos gente. Dorme, Françoise.
Garota miserável, alucinando a essa hora madrugada. Virei para o lado, queria dormir mesmo, precisava, mas pelo jeito não seria hoje.
- É sério, Louis. Ouve!
Dois minutos depois a chave da porta da frente giro lentamente, fazendo aquele barulho inconfundível.
- Ouviu? Perguntei a ela, já sentado na cama.
- Claro que ouvi, não te acordei por acordar. Tem gente aqui dentro.
Levantei devagar para não fazer barulho e Françoise veio atrás, o corpo tremulo quase grudado ao meu.
- A arma! Onde está a arma? Sussurrei a ela.
Pegou a arma no fundo falso da gaveta, não sei se tinha o controle, pois seus olhos estavam cheios d’água e suas mãos trêmulas. Apesar disso, sua mira era boa, tinha feito aula de tiro há algum tempo.
Abria a porta do quarto e então, nós andamos no escuro até chegarmos à sala.
A porta estava entre aberta, deixando à mostra a silhueta do miserável. Era alto, maior que eu, talvez. Acendi a luz.
- Quieto ai! Ordenei.
O que ele estava fazendo aqui àquela hora?
-Pierre?!
- Sim.
Respondeu sorrindo, um sorriso descarado.
- Como você entrou aqui?
- Com a minha chave.
Disse Françoise e em um repente de loucura, andou até ele com a arma abaixada.
- O quê?
Não conseguia processar o que estava acontecendo. A mão de Pierre enroscou na cintura dela, puxando a para perto e dentro de mim uma raiva desumana explodiu, fazendo-me correr em sua direção.
A arma disparou, direto no meu peito. Quente demais como se suturasse no mesmo instante em que abria o ferimento.
Meus olhos quase fechados ainda puderam ver seus olhos grandes e o rosto infantil sobre mim.
- Isso é tudo, Louis.
Sua voz fraca aos meus ouvidos e essa frase trouxe a lembrança. Ela havia dito isso uns dois anos atrás quando estávamos no banheiro do meu quarto, ela penteava os cabelos escuros com a minha escova e eu a observava. Então ela disse: “minhas roupas ocupam metade do seu armário, meus cabelos estão na sua escova e meu cheiro está na sua cama. Acho que deveríamos morar juntos. Isso é tudo, Louis”.
Meus olhos ficaram embaçados, minhas forças se esvaindo e não senti mais nada, nem o amor que nutri por ela durante todo esse tempo.