segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Dentro de Você - Meio

Olhei em sua direção e senti certo alívio ao ver seu rosto. Lucas era nosso amigo há anos e participava do nosso universo, sempre esteve próximo antes de ir morar na Europa após o termino da faculdade.
Eu ainda não havia largado a mão de Levi quando ele me abraçou forte e beijou meu rosto.
- Sinto muito, Rô – seus olhos estavam cheios d’água.
- Eu também – enfiei o rosto em seu ombro e me agarrei a ele.
Choramos juntos por algum tempo.
Lucas e Levi estudaram juntos desde o tempo de criança até a faculdade, o elo entre os dois era muito forte e mesmo com o afastamento de Lucas os dois mantinham contato quase que diariamente. Eram praticamente irmãos e quando nos conhecemos eu era a mascote deles, foi a época gloriosa de nossas vidas, tínhamos quatorze anos e tudo era divertido e desafiador, nos conhecemos na escola no meio da oitava série quando eu mudei para a cidade e desde então permanecemos unidos como uma mini família de adolescentes, uma irmandade imatura que cresceu com o tempo, que aprendeu a ser “gente grande” e Levi odiava ser gente grande, dizia que gostaria de ter 15 anos pro resto da vida assim nós não teríamos que nos preocupar em ser responsáveis ou trabalhar para comer.
- Eu vou cuidar dela, cara – disse Lucas debruçando-se sobre o caixão. – Vou ajudá-la a superar, você vai fazer falta.
Sua mão segurava a minha e eu segurava a mão gélida de Levi.
- Quer ir um pouco lá para fora, Rô? – perguntou Lucas.
- Não! Vou ficar aqui com ele, pode ir.
Beijou o rosto do amigo morto e saiu.
Olhar para ele ali, imóvel e não poder fazer nada era muito mais que doloroso.
Meia hora se passou e um padre entrou na capela, Levi era católico, Lucas e eu não víamos fundamentos para acreditar na religião.
O padre pediu para que todos se reunissem para que fosse rezada uma pequena missa e logo Lucas entrou e ficou ao meu lado. Enquanto a missa acontecia desliguei-me do mundo fiquei o tempo todo acariciando o rosto e os cabelos da minha metade que permanecia inanimada dentro daquele caixão, minhas lágrimas pingavam sobre ele e umedeciam o colarinho de sua blusa azul que eu havia dado em seu último aniversário.
Fez vinte e três anos no verão passado e comemoramos nosso aniversário juntos, pois era apenas dez dias mais velho que eu.
Por menor que fossem as lembranças enchiam minha cabeça e tornavam-se um imã para outras milhões delas, lembranças felizes dos nove anos que passamos juntos. Isso me tirava da dor, fazia com que eu o esquecesse ali deitado, frio com o ritmo cardíaco esquecido.
- Está na hora – disse Lucas puxando-me para trás.
- Hora de que? – fiz com que ele me largasse.
- Eles vão fechar o caixão.
- Não! Gritei. – Não o tranquem aí, ele odeia lugares fechados, não o tranquem, por favor.
O padre veio até mim e colocou a mão em meu ombro.
- Acalme-se, minha filha. Agora é a hora dele, foi a vontade de Deus.
Uma raiva enorme subiu pelo meu corpo, meus dentes trincaram e meus olhos quase foram ejetados de meu rosto.
- O seu Deus o levou e não há nada que você diga que possa amenizar essa perda. Que Deus é esse que mata um inocente sem mais nem menos?
- Acalme-se, filha – repetiu o padre.
- Não peça para que eu me acalme se não sabe o que eu sinto.
- Deus o... – tentou continuar.
- Engula o seu Deus – dei as costas ao padre.
Voltei para o lado de Levi, olhei seu rosto mais uma vez e beijei-o.
- Desculpe! Você sabe que nunca acreditei – beijei-o novamente.
Seu pai e outros homens estavam pegando a tampa do caixão e caminhando até ele.
Segurei firme suas mãos e cochichei em seu ouvido:
- Vai ficar tudo bem, não é tão apertado quando parece, vou estar por perto – uma lágrima escorreu do meu rosto para o dele. – Eu te amo!
Foi a última coisa que disse a ele em vida na sacada de minha casa sobre os degraus de pedra e agora a última coisa antes de trancarem seu caixão.
Meu coração rufava dentro do peito ao vê-los trancando-o lá dentro, ele tinha tanto medo de lugares fechados, odiava elevadores ou qualquer outro lugar que pudesse ficar trancado e nunca chaveava portas nem trancava janelas.
Peguei em uma alça de seu caixão. Eu ajudaria a carregá-lo.
- Você vem? – perguntei a Lucas.
Ele assentiu, pegou outra alça ao meu lado e então iniciamos a nossa última caminhada a três, a última vez que andaríamos lado a lado.
Não lembro o peso de seu caixão nem se fazia frio enquanto andávamos, só o que recordo é do sofrimento e de como as lágrimas cortavam meu rosto ao carregar meu noivo para o sepulcro. Lucas olhou para mim e disse sem som algum para que levantasse minha cabeça e encarasse aquilo e foi o que fiz. Respirei fundo, levantei minha cabeça e andei, mantive o foco mesmo com as lágrimas embaçando minha visão, segui e naquele exato momento a emoção que brotou foi algo parecido com o orgulho que sentia quando andava com Levi pelas ruas da cidade. Eu tinha o privilégio de tê-lo, aquele ser fantástico me amava como todas suas forças, independente das circunstancias e nada no mundo poderia mudar isso, nem a morte.
Chegamos até a sua cova e a claustrofobia dele berrava dentro de mim, não queria colocá-lo ali, não queria que o tapassem com terra.
- Lucas você não pode deixar que façam isso – agarrei-o pelos braços. – Ele tem medo, você sabe. Você estava junto aquela vez que o elevador parou e ele desmaiou de medo. Diga para pararem.
- Roberta, ele-está-morto – sua voz era ríspida.
- Mas e se... E se ele acordar de repente e se voltar a viver? – soluçava baixo ao falar.
- Ele não vai ressuscitar. Ele está morto, os órgãos dele foram doados. Ele está morto – seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas ainda assim eram duros.
Limpei as lágrimas que escorriam pelo meu rosto e voltei para perto do caixão. Mais uma vez o padre falava sobre o quanto Levi tinha sido bom filho, bom amigo e bom companheiro durante a vida e eu me perguntava o porquê de dizer tudo aquilo se nem mesmo o conhecia, ele não era bom, era extraordinário, a melhor pessoa, o coração mais puro que eu já conheci.
Se eu pudesse teria mandado aquele padre calar sua santa boca ou lavá-la antes de falar de Levi, mas eu já tinha recuperado meu juízo naquele momento ou entrado em choque completo, pois já não chorava só sentia raiva de tudo e de todos, não queria ninguém perto de mim, que fossem todos embora, eu o enterraria se fosse preciso, entraria junto no caixão se ele sentisse medo, não iria embora nunca.
Posicionaram as cordas para levar seu caixão ao fundo da cova, não suportava aquilo. Andei até ele e pus a rosa vermelha sobre seu caixão.
- Esta tudo bem, não tenha medo – o desespero se debatia dentro de mim e eu tinha vontade de urrar minha dor à todos. – Eu vou te encontrar em algum lugar.
Não esperei para ver seu caixão sendo baixado, não deixaria que jogassem terra sobre ele se estivesse por perto, então saí e observei-os de longe sentada em um banco debaixo de uma árvore ainda nua pelo frio rigoroso do inverno. Distante eu sentia a revolta diminuir, pensava nele ainda presente e girava sua aliança, agora em meu dedo juntamente com a minha.
Um cheiro forte trazido pelo vento fez meu estomago vazio embrulhar, vomitei o nada que havia comido e me senti fraca. Vi ao longe que as pessoas estavam indo embora lentamente e Lucas vindo até mim, sentou-se ao meu lado sem dizer uma palavra e em silêncio permanecemos por algum tempo.
- Desculpe – disse ele.
- Tudo bem!
- Você passou mal?
- Sim – não tinha muitas palavras.
- Vamos embora então – sugeriu.
- Não, quero ficar mais um pouco – eu disse.
Ficamos ali sentados sem dizer nenhuma palavra com o queixo apoiado nas mãos até o céu empalidecer.
- Levi chorou quando você foi embora – disse a Lucas.
- Ele chorou na sala de espera da emergência quando aquele fusca atropelou você – riu.
- O pavor dele quando me juntou do chão foi terrível, achei que ele fosse ter um treco antes de mim.
- Vocês dois pareciam de cera quando cheguei a emergência do hospital. Levi estava sem camisa, cheio de sangue nos braços, segurando a camiseta contra o corte na sua cabeça e você toda arrebentada deitada naquela maca.
- Tenho a cicatriz ainda – passei a mão no corte no lado direito da minha testa, próximo a sobrancelha. – Poderia ter sido eu ao invés dele.
A melancolia chegou como uma enxurrada em cima das lembranças.
- Ele não aguentaria – disse Lucas.
- Eu não vou aguentar – confessei.

[ Continua ]

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Dentro de Você - Início

Havia várias pessoas ao redor de seu caixão quando entrei pela porta lateral daquela capela fria. As janelas estavam entreabertas para que houvesse um pouco de ventilação, mas o vento do final de julho era congelante. As chamas das velas oscilavam toda vez que o vento forte entrava por alguma das aberturas, permaneci a porta observando os rostos conhecidos e inchados de cada um deles, minha família postiça. Estavam tão imersos na dor da perda de alguém tão jovem que não notaram minha presença.
Não existia em mim forças para locomover-me, as mãos fechadas em punhos dentro dos bolsos de meu casaco, meus olhos ocultos atrás do óculos escuro, não queria vê-lo imóvel, frio, sem o rosado saudável que sua pele costumava ter, não podia, era covarde demais, não queria encará-lo dessa forma.
- Roberta! - senti uma mão em meu ombro.
Era Magda, tia dele, a grande culpada por termos nos encontrado. Ela tinha uma alegria natural que cobria-nos quando estávamos a sua volta, mas hoje até ela a mulher do rosto colorido aparentava uma morbidez em seu semblante, uma tristeza mortal.
Com a mão sobre meu ombro conduziu-me mais uma vez até ele, agora para o último encontro, para o adeus. Abria espaço por entre as outras pessoas como já havia feito anos atrás quando disse a ele que era de mim que ele precisava, alguém louca como eu. Todos a nossa volta olhavam-me com um pesar imenso, era lastimável tê-lo perdido tão cedo.
A sua cabeceira estavam o pai e a mãe, separados há anos, unidos agora pela dor de ter um filho morto. Era dolorosa a semelhança entre ele e o pai, seus rostos seriam idênticos não fossem os olhos cor de âmbar herdados da mãe. Cada centímetro dos rostos de seus progenitores trazia a mim uma lembrança. Cumprimentei-os com um balançar de cabeça, pois era o máximo que eu podia fazer naquele momento, logo atrás deles dezenas de coroas de flores de um colorido tímido que traziam em suas faixas homenagens de amigos distantes e ler seu nome em cada uma delas estilhaçava meu coração.
As lágrimas caiam de meus olhos sem que eu sentisse e embaçavam os óculos impedindo minha visão. As mãos de Magda me ampararam quando meus joelhos cederam e quase fui ao chão, tudo a nossa volta ficou branco, gelado e girava tão rápido que perdi o equilíbrio por um momento.
Vozes, choros, soluços foi o que ouvi quando comecei a recuperar meus sentidos. Colocaram-me sentada ao lado de seu caixão e por mais de dez minutos olhei para a renda branca que caia de dentro dele e roçava na madeira escura. Não pensava em levantar e tocá-lo, não podia tocá-lo naquela circunstancia, tinha medo de vê-lo, não queira aceitar que toda aquela vontade de viver que transparecia de seus olhos não estava mais presente.
Queria lembrar-me dele como na última vez que nos vimos, pois sorria e cantava tanto que sol ausente parecia nos aquecer naquela tarde chuvosa e fria. Estávamos em seu quarto tocando violão, eu dedilhava alguma bossa nova e ele inventava rimas para minha melodia vulgar. Vestia um casaco branco fino para a estação e zombava por eu estar enrolada em um edredom xadrez de azul e branco, que recendia seu perfume, e ainda assim reclamar do frio.
Estava mergulhada naquelas lembranças e podia, imediatamente, afogar-me nelas e ir embora junto dele. A vida não deveria continuar sem que ele estivesse presente para que realizássemos nossos sonhos. Queríamos filhos ruivos com meus olhos verdes e seus dentes perfeitos, ensinaríamos a eles todas as coisas que aprendemos juntos e um dia poderíamos contar-lhes como éramos felizes em tê-los tido.
Tínhamos tantos planos, nossa vida estava preparada e nós estávamos preparados para enfrentá-la juntos como sempre fazíamos, estaríamos de mãos dadas e cabeça erguida quando as dificuldades surgissem, pretendíamos ser um time, uma equipe que cresceria com o tempo, cresceria em meu ventre. Pretendíamos.
Sua mãe agachou-se em frente a mim, tirou o óculos do meu rosto e limpou minhas lágrimas.
- Por que, Helena? Por que ele? - as palavras rasgavam o nó em minha garganta.
Balançou a cabeça negativamente como se dissesse que não compreendia também, que sofria tanto quanto eu por tê-lo perdido. Então lágrimas se acumularam em seus olhos tristes despencando face a baixo e pingaram em minha calça, seu rosto pousou em meus joelhos e chorou cada vez mais, fazendo com que soluços brotassem de seu peito. Acariciei seus cabelos que eram escuros como os cabelos de seu filho que jazia ao nosso lado.
Se ele estivesse entre nós em um momento como esse teria nos abraçado e dito algo para que ríssemos, tentaria nos confortar a todo custo.
Era sempre tão amoroso conosco, as mulheres de sua vida, tratava-nos com tanto carinho que era impossível não ficar comovida com sua dedicação, olhava-nos quase admiração e fazia com que nos sentíssemos as pessoas mais importantes do mundo. Quando sorria seus pequenos olhos âmbar cintilavam e então era minha vez de olhá-lo com admiração e a pureza do amor que sentia – sinto e nunca deixarei de sentir - transbordava de mim e ali eu poderia permanecer por horas, apenas olhando para ele, procurando alguma parte de seu rosto que eu ainda não conhecesse.
Todo meu corpo doía rejeitando o movimento para levantar-me, não tinha forças era eu contra mim, a razão que me mandava levantar e a emoção que se debatia em meu ser mantendo-me sentada com as mão sobre os cabelos de Helena.
- Levante-se agora, querida. Roberta precisa de um tempo – disse Magda a Helena.
- Quando você estiver pronta pode vê-lo – disse a mim.
- Não quero tia, por favor – supliquei.
- Você precisa ter força para enfrentar – tinha a mesma ternura que ele costumava usar ao falar comigo.
- Minha força está dentro desse caixão.
Encolhi-me na cadeira, as mão ao redor da cintura, a cabeça nos joelhos e chorava tanto que era difícil de respirar, os soluços agora vinham de meu peito que doía de uma forma horrível. Sentia que minha vida havia acabado com a dele.
Minha mão agarrou-se ao caixão e apertava tão forte que meus dedos ficaram roxos, não podia perdê-lo. Por que ele não me acordava daquele pesadelo como já havia feito antes?
Por que não estávamos cantando em seu quarto ou correndo para fugir da chuva? Queria seus braços ao meu redor e sua voz serena dizendo que era só um sonho e que ele ficaria comigo até eu pegar no sono novamente. Queria o vivo para me tirar dali, mas ele não veio não me acordou e nem disse que era apenas um sono.
Levantei com as mãos ainda agarradas ao caixão, olhei para seu rosto, parecia dormir tão profundamente, só que dessa vez eu queria perturbar seu sono, queria que levantasse para que eu dissesse bom dia. Não acordou.
Afaguei rosto e ele não respirou fundo como costumava fazer, não sorriu. Segurei sua mão, mas a sua não apertou a minha nem tentou estralar meus dedos, ele não sorria, oh meu Deus. Passei os dedos por seus lábios e ele não tentou mordê-los.
- Vamos Levi, acorda – segurei seus ombros. – Por favor, acorda, não faz isso comigo. Não faz por tudo que é mais sagrado. Não me deixa, não, NÃÃÃÃO – gritava completamente desesperada.
Ninguém tentou me tirar de perto dele, eu não permitiria, bateria neles se fosse preciso, ninguém o tiraria de mim, nem Deus, nem a morte, nem o Diabo. Eu acabaria com eles, um por um se fosse preciso, mas ninguém o levaria de mim.
Minhas lágrimas tinham molhado seu rosto pálido e algumas pareciam vir dos seus olhos, como eu queria que fosse verdade, queria que ele chorasse comigo. Deitei sobre seu peito chorando sem parar e por um segundo cheguei sentir sua mão em meus cabelos, mas era delírio, suas mãos continuavam cruzadas sobre o peito, próximas ao meu rosto, frias como uma pedra, envolvi-as entre as minhas para aquecê-las, para ressuscitá-lo.
Fiquei muito tempo recurvada sobre ele, quando não havia mais lágrimas cantarolei Someday we’ll know para ele e meu corpo inteiro ainda retorcia-se naquela luta interior, meus músculos estavam rijos.
- Já é o suficiente – disse Helena tentando me tirar do peito de Levi.
- Não – protestei. - Deixe-me ficar, eu preciso.
Não disse nada, só afastou-se de mim e novamente recolheu-se a seu luto.
Permaneci sobre seu peito desejando adormecer ali como tinha feito na primeira vez que dormimos juntos em um quarto de hotel barato no centro da cidade. Tínhamos dezesseis e estávamos tão apaixonados que se o mundo desabasse nem notaríamos, estávamos imersos um no outro ignorando a decadência das paredes mal pintadas, a cama estreita, a antena velha sobre a TV, a mesa bamba e uma janela que dava para os fundos de algum lugar abandonado. Nada disso importava, pois nós tínhamos um ao outro naquele momento e para mim não existia mais nada entre o céu e a terra que não fosse Levi e seu corpo esguio e alto sobre o meu naquela entrega total e recíproca.
- Roberta, você precisa se levantar daí, as pessoas querem se despedir dele – Magda quase ordenava.
- Tudo bem – levantei.
Não o deixaria ali, segurei sua mão e permaneci a seu lado enquanto todos passavam, olhavam-no e davam-me os pêsames, agradecia com um aceno de cabeça, pois me faltavam palavras e sentia que se falasse um ai sequer desabaria em um pranto incontido novamente.
Não lembro quais pessoas passaram por nós enquanto segurava sua mão, elas não me importavam, a pena que elas sentiam não o trariam de volta a vida, suas lágrimas e palavras não abrandariam a dor que crescia cada vez mais em mim. Ninguém no mundo sentiria o mesmo que eu, ninguém sabia tudo sobre nós, pois éramos fechados demais vivíamos no nosso universo onde podíamos ser quem realmente éramos com todos os defeitos que as outras pessoas não aceitavam, mas ele me aceitava e eu o aceitava do jeito que viesse feliz ou triste, louco ou certo demais, mudo ou falante, não importava como eu sempre estaria ali para compartilhar de sua vida.
- Ah, cara! Como isso foi acontecer?! - exclamou alguém na porta.

[ Continua ]

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

É proibido fumar - FINAL.

- Não, claro que não. Você está me deixando assustada.
Nunca o vi parado lá, apenas o vi algumas vezes dentro da agência e sempre acreditei que ele fizesse algum trabalho lá. Só de imaginar ele atrás de mim, com os olhos verdes fixos, prestando atenção no que eu fazia, meu coração acelerou e senti um medo horrível, minhas mãos começaram a suar e meus olhos ficaram mais arregalados ainda.
- Tudo bem, Anita, não vai acontecer nada com você - afirmou.
- Quem disse isso? Se ele for tão louco como parece agora vai me matar e vender meu rim - falava tão rápido que talvez Mathias nem entendesse.
- Não surta - pegou-me pelo braço. - Ele não vai fazer nada e também não chegará mais perto de você.
- Não? - perguntei quase triste.
Se ele não se aproximasse mais como eu perguntaria se tudo era verdade? Como eu saberia o que aconteceu?
- Você se importa? - perguntou desconfiado.
- Não! - respondi, mas no fundo me importava.
Mesmo que ele sumisse durante meses e toda vez que aparecesse deixasse uma lacuna de quase loucura, eu sentiria falta da perturbação. Não sei quanto tempo se passou depois da minha resposta, nós ficamos em silêncio, eu olhava fixamente para o palco fingindo estar interessada. Pensei em como seria viver sem a surpresa que ele causava em mim e no momento em que o desespero começava tomar conta da parte racional do meu cérebro um dos amigos de Mathias nos encontrou.
- Vocês! - gritou ele.
Nós olhamos rápido, assustados pela quebra inesperada de nossos pensamentos.
- Você! - sorri para ele. Pela primeira vez nessa noite eu me sentia alegre ao ver algum deles.
- Nós quase morremos procurando vocês, onde estavam?
- Anita estava ajudando uma amiga bêbada e nós tivemos que levá-la para casa. Foi mal não ter avisado vocês, mas se nós demorássemos mais um pouco aqui dentro, teria vômito pelas paredes agora - Mathias disse rindo.
- A coisa não tava muito boa para ela - ri de minha amiga imaginária.
Ele riu conosco e nos convidou a voltar à mesa com todo mundo e agora eu não poderia protestar fui e agi como uma pessoa normal durante o resto da noite.
Era tarde, ou melhor, cedo quando deixamos o bar, estava quase amanhecendo e o cantar dos pássaros entrava nos meus tímpanos. Mathias parou o carro na frente do meu prédio e se desculpou pelo que tinha dito.
- Tudo bem, Mathias, a culpa não é só sua eu exagerei - assumir que também era culpada não feria meu ego.
Ele piscou, não como um tic nervoso, mas assentindo, concordando sem palavras. Parecia ter mais cautela com as palavras agora. Ia soltar o sinto de segurança para sair do carro, mas sua mão prendeu a minha, levantei os olhos para olhá-lo e sua expressão era ilegível.
- O quê? - perguntei.
- Apesar de tudo, foi bom hoje, você até que é divertidinha - deu um sorriso debochado.
- Não te prometi diversão - ri dele. – Conflitos a parte eu gostei também. Ah e seus amigos não são dos piores.
- Eles gostaram de você - deslizou o dedo indicador em minha bochecha.
- Óbvio que gostaram, eu sou irresistível - ri.
- Você é - aproximou o rosto do meu.
- Wooow - disse com sua boca já na minha.
Despedi-me dele desejando que a noite não acabasse, que o sol não nascesse, que os pássaros se calassem e nós tivéssemos mais algumas horas juntos. Abri o portão e quando estava no meio do caminho até a porta ele gritou:
- Anita!
- Ahn? - girei o corpo para olhar para ele.
- Tchau - acenou e sorriu.
- Tchau, Mathias - joguei um beijo para ele e entrei.
Entrei no prédio, passei na ponta dos pés pelo porteiro que dormia debruçado sobre a mesa, subi as escadas e olhei para a placa e me rendi, suspirei por ter perdido a batalha e acendi um cigarro. Se alguém passasse ali àquela hora e me visse, eu só precisaria esperar a multa no final do mês. Venha multa, nem ligo.
Estava cansada demais para pensar nas coisas que tinham acontecido essa noite, complicação demais para um dia só e Mathias podia dizer quantas vezes quisesse que Ricardo não voltaria ou que não o veria mais, mas eu sabia que mais dia, menos dia ele estaria em alguma esquina para bater-se de frente comigo. Não era medo o que eu sentia, era ansiedade, queria adivinhar como as coisas iam ser. A ansiedade de agora era a mesma que assolava meus pensamentos todas as vezes que ele ia embora.
Apaguei o cigarro no solado do sapato e subi até meu apartamento e o susto que levei foi memorável, voltei para as escadas. Não podia acreditar. Espiei pelo canto da porta e era verdade. Corri escada abaixo, queria gritar por socorro ou encontrar uma barra de ferro para me defender, cheguei à portaria, olhei em volta e não tinha nada que eu pudesse usar. Meu coração acelerava a cada segundo e eu me sentia cada vez mais desprotegida.
O porteiro ainda dormia, mas que maldito sono pesado era esse, passei por ele, fui até a porta na esperança de Mathias ter permanecido ali por mais de dez minutos, inútil, a rua estava vazia, então engolindo o pavor de encará-lo novamente subi as escadas e andei lentamente em sua direção. Ele era surreal.
- Ricardo, hey Ricardo, acorda! - chacoalhava o com força.
Ele despertou assustado, perdido, acho que não tinha consciência de onde estava.
- Ah, Anita - sussurrou e envolveu-me em seus braços. - Desculpa, diz que me desculpa! Me perdoa, eu não fiz por mal.
Cada vez seu abraço ficava mais forte e os pedidos mais lamuriosos, senti algo escorrendo em meu ombro. Ele estava chorando, oh meu deus, por que chorava tanto?
- Calma, não precisa disso tudo - limpei as lágrimas de seu rosto.
- Você não vai acreditar em mim nunca, nunca. Vai gritar, chamar a polícia, não vai me deixar falar - as lágrimas vertiam de seus olhos. - Você tem nojo de mim, me olhou com raiva antes.
- Chega dessa histeria, criatura! - falei baixo, não podia gritar e acordar todo mundo.
Ele se afastou de mim, seu corpo deslizou até o outro lado da porta e em seus olhos havia medo, medo de verdade, medo que paralisa.
- O que você quer me dizer? Porque eu não vou acreditar? Eu não tenho nojo de você - eu não me reconhecia com aquela calma toda.
Ele baixou a cabeça, as bochechas rubras em razão do choro.
- Eu imagino o que Mathias te disse - seus olhos estavam mais verdes do que nunca.
- Mathias falou o que foi espalhado por toda a agência.
- Mas é mentira! - disse com os fixos em mim.
- Quem prova isso? - perguntei.
Ele continuava encolhido do outro lado da minha porta com as mãos apoiadas no chão e a cabeça quase encostado aos joelhos.
- Você não vai falar? Se não for vou entrar e vasculhar os jornais, revistas e sites e descobrirei sozinha, sendo assim eu posso tirar minhas próprias conclusões. No momento tudo que eu sei é que você “é um monstro, um verme e me observa enquanto trabalho” - mudei a entonação da voz para que ele percebesse que aquelas eram palavras de outra pessoa.
Endireitou o corpo e prestava plena atenção em mim quando voltei a olhá-lo.
- Você realmente quer saber?
- Sem dúvidas e se você puder começar logo eu agradeço - acomodei-me no chão com as costas apoiadas na parede.
- “Aconteceu há mais ou menos dois anos, eu estava no interior em um festival de rock do qual eu havia participado da divulgação. Era começo de dezembro, um calor infernal. No início eu fiquei apenas “por trás das cortinas” ajudando no que era necessário, o festival começou na sexta e terminaria no domingo, havia bastante gente por lá, todo canto que se olhava tinha barracas montadas e pessoas já bêbadas ao redor delas” – olhava fixo para parede a nossa frente.
Eu estava cada vez mais nervosa e ele falava tão pausadamente que tinha vontade de esganá-lo, mas não o interrompi.
- “As coisas foram bem durante a sexta-feira, não tivemos nenhum transtorno e lá por duas da madrugada meu trabalho acabou. Não tinha bebido o dia todo, não podia fazer nenhuma merda enquanto eu fosse o responsável, o meu já estava na reta, se cometesse o menor deslize iam me chutar da equipe de divulgação e organização. Passei a granada para o outro cara e fui para frente do palco assistir os shows e beber com meus amigos.
A penúltima banda subiu ao palco às quatro horas da manhã, eu estava doidão lá, pulando, batendo cabeça até a hora em que ela apareceu. Era linda, cabelo escuro, pele clara, vestia uma mini saia, uma blusa justa que acompanhava as curvas de seu corpo e seus coturnos estavam sujos de barro, pois tinha chovido durante a tarde.
- Ô cara - disse olhando para mim.
- Eu? - apontei o dedo indicador para mim mesmo.
- É, tu mesmo. Tem fogo? - balançou o cigarro entre os dedos.
Alcancei o isqueiro para ela e ao devolver-me segurou minha mão.
- Eu sou Paola e você?
- Não, eu não sou - eu ri, ela riu e ficamos ali conversando.
A partir daí tudo fluiu normalmente, fomos para a barraca dela, ficamos lá as coisas começaram a esquentar e então...” – o interrompi antes do final da frase.
- Os detalhes mais sórdidos não me interessam, pode passar essa parte - franzi a testa .
- Tudo bem - ele sorriu.
Sua expressão era mais calma agora, parecia aliviado, mas não tinha como disfarçar o cansaço e o sono que quase fechavam seus olhos.
- “Bom, quando acordei às onze horas de sábado ela não estava mais na barraca, levantei e tentei procurar por ela, não a encontrei e ninguém ali tinha a visto, ela voltou para casa, ao menos foi isso que ela disse a polícia.
Na segunda-feira após o festival, um oficial de justiça bateu na minha casa trazendo uma intimação para que eu comparecesse a delegacia e blá blá blá - revirou os olhos. - Fui até lá e a encontrei com a cara inchada de tanto chorar, os olhos vermelhos, sentada em um banco encostada a parede meio encolhida. Quando me viu entrando desabou em um choro incontido, completamente desesperada, foi aí que eu me apavorei, não sabia o que estava acontecendo nem o porque da garota estar lá” - parecia indignado.
- Xiii, mais baixo, vai acordar meus vizinhos.
- Desculpa, ainda não sei lidar com isso, foi injusto, Anita. Nunca forçaria ninguém a isso, ela quis, ela foi até mim - balançava a cabeça com irritação.
- Ainda falta o final - disse.
- “Ela era menor de idade, mas não parecia, tinha dezesseis anos, disse à família que eu tinha a forçado, revirou minhas coisas enquanto eu dormia, pegou minha identidade anotou meu nome completo e fez a denúncia. Eu contei minha versão da história, mas ninguém acreditou. Tive que pagar fiança para sair de lá e foi isso, é essa a verdade” - observava decepcionado a expressão em meu rosto.
- Você não acredita, não é? - perguntou.
- Não acho que você tenha a forçado, eu sei como as coisas são no mundo em que a gente vive, só não entendo porque e ela te denunciou - analisava os fatos de todos os ângulos.
- Ela disse que eu a forcei, mas não o fiz, juro que não, jurei ao delegado, ao juiz, ao meu pai, mas eu sou o bêbado rebelde cheio de testosterona, eles não acreditam - algo ardia em seus olhos, um sentimento múltiplo.
Nada parecia mentira, ele era convincente havia uma sombra de tristeza em sua voz.
- Por que você me observava na agência? - perguntei, sem ligar para a continuidade da conversa.
- Eu não podia chegar perto de você, pois toda vez que eu me aproximava você vinha cheia de perguntas e eu não podia respondê-las, pois você descobriria, como descobriu essa noite, as coisas que pensam de mim e fugiria com nojo. Eu me importo com o que você pensa, eu te observei sim e te segui algumas vezes - revelou sem nenhuma vergonha de tê-lo feito.
- Foi atrás de mim por quê? - estava surpresa.
- Quando você parecia triste eu andava devagar atrás de você e causava um daqueles encontros ocasionais, queria estar perto, mas tinha medo do que você pensaria - seus olhos estavam novamente cheios de lágrimas.
- Você é louco - exclamei incrédula.
- Estou sendo sincero, minha intenção não era te assustar, mas se é a verdade que você quer aqui está a verdade. Eu vivo com um fantasma nas minhas costas há dois anos e não acho que vou me livrar dele com o tempo, eu sou um monstro para as pessoas, um verme como lhe disse Mathias, eu só queria que você soubesse a minha versão dos fatos para não ter de esconder-me mais e é só isso, Anita - levantou-se.
- O que está fazendo?
- Indo embora – disse.
- Não, espera, sente-se. Eu acredito em você, pode parecer absurdo para Mathias e aos outros, mas eu acredito em você. Não existia razão para você ter vindo até aqui esta hora da manhã, você não tinha nenhuma obrigação comigo, mas veio porque se importa - um sorriso escapou de minha boca.
Ele sentou-se ao meu lado e me abraçou.
- Ninguém mais importa Anita, você é a pequena do meu coração - cochichou em meu ouvido.
- Conta como é me seguir - pedi.
Ele riu e deslizou até meu colo.
- Aham. Posso? - seus olhos verdes quase suplicantes.
- Deita.
Mexi em seu cabelo liso e escuro como a noite. O som de sua voz embalou meu sono e ali adormecemos, no mármore gelado do chão do corredor.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

É proibido fumar - Parte 3

Eu sentia meus olhos arderem como se tivessem pegando fogo e tinha um grito preso na minha garganta, uma raiva forte demais, eu queria que ele evaporasse da minha frente.
- Mas, Anita isso é tudo verdade e você sempre prezou pela verdade - a raiva de meu rosto se espalhava como espanto em seu rosto pálido.
- Sempre prezei? Há quanto tempo você me conhece? Você vive comigo? Não, eu sou a mentira Mathias e a mentira está dizendo tchau.
Deixei-o ali, parado sozinho na frente do palco, fui ao banheiro e fiquei um tempo encostada a parede esperando a raiva passar. Minha perna tremia freneticamente enquanto eu proferia insultos a ele.
- Hey moça! - a voz veio do fundo do banheiro.
- Sim? - respondi rispidamente.
- Desculpa perguntar, mas está tudo bem?
A preocupação da mulher que limpava o banheiro não deixou que eu fosse rude com ela.
- Estou sim, obrigada - forcei um sorriso.
Ela retribuiu o sorriso, virou a água fétida que estava no balde vermelho dentro da pia, disse tchau e saiu pela porta. A porta de vai-e-vem balançou onze vezes até parar completamente, fui até o espelho, retoquei a maquiagem sem prestar muita atenção no que fazia, não procuraria Mathias para me desculpar, não mesmo. Ele foi longe demais, mexeu com meu ponto fraco, a vida, ele não sabia nem um terço de tudo que eu tinha vivido para agir dessa forma, para me aconselhar como se fosse minha mãe.
Guardei a maquiagem e saí do banheiro.
Era inacreditável. Porque diabos Ricardo estava parado ali na porta?
- O que você tem? - perguntou.
Que ótimo, mais uma pessoa para tentar saber o que se passava comigo.
- E o que você tem a ver com isso? - cuspi as palavras nele.
- Eu me preocupo com você! - aproximou-se de mim.
- Ah, conta outra piada agora, por que essa não teve graça.
Colocou os braços na parede atrás de mim fazendo com que eu ficasse presa entre eles.
- Pelo amor dos deuses, Ricardo, qual é o teu problema? Você passou três vezes, praticamente do meu lado e não olhou na minha cara, agora você vem dizer que se preocupa, vai para o meio do inferno - tentei me desvencilhar de seus braços.
- Porque você nunca acredita em mim, Anita? - parecia suplicar, mas que imbecil.
- Porque você está bêbado. Me deixa sair! Empurrei-o, mas ele não me largou, minha força fez com que ele apertasse mais os braços ao meu redor como uma jibóia louca.
- Hey Ricardo, solta ela, cara!
Era Mathias atrás dele, chegou como se fosse o príncipe salvador da pátria. Que coisa asquerosa!
- Ela quer ficar aqui - Ricardo berrou.
- Não, eu não quero - gritei mais alto que os dois. - E também não preciso de ajuda Mathias, eu me entendo com ele.
- Ah, cala essa boca, Anita - falou isso e puxou Ricardo que me puxou pelo vestido.
As mãos de Ricardo só afrouxaram de meu vestido quando Mathias o segurou pela camisa e gritou para que me soltasse. Eu estava perplexa com tudo aquilo, não sabia como agir, inconscientemente parei atrás de Mathias, enquanto ele berrava ameaças a Ricardo que em nenhum momento desgrudou os olhos dos meus.
- Vem! - ordenou Mathias me arrastando dali.
Meus olhos também não abandonavam os de Ricardo, era como estar presa a um caleidoscópio. Não tinha visto que Mathias já o tinha largado, só obedeci ao que a voz dele dizia e segui seus passos olhando para trás sem conseguir tirar meus olhos daqueles olhos verdes.
- Pronto! Você pode me soltar agora - sorriu tão calmo como se nada tivesse acontecido.
Meus dedos estavam agarrados tão fortemente em sua camiseta que quando soltei a marca deles permaneceu. Mathias puxou uma cadeira e eu me sentei.
- Ah, me desculpe - quase doía dizer isso a ele.
- Não foi nada. Você está bem? - havia preocupação de verdade na sua voz.
- Estou. Não, não estou - não poderia mentir agora. – Ele me assusta.
- Ele não vai voltar, pelo menos não essa noite - arrastou minha cadeira pra perto da dele e pousou o braço sobre meus ombros.
- Obrigada - sorri.
Nós ficamos sentados em silêncio por alguns minutos, até recompormos nossas mentes. O braço dele continuava sobre meus ombros, encostei-me nele e pude sentir seu suspirar quando apoiou o rosto em minha cabeça. Separei uma mexa de cabelo e comecei a enrolar devagar.
- Por que você sempre faz isso? - perguntou.
- Para dar corda nos meus neurônios.
Seu riso foi breve, ainda suspirava de forma preocupada.
- O que foi? - perguntei virando o rosto para ele.
- Você sabe do que se livrou antes?
- Dos seus amigos?! - queria que ele risse.
- É sério, Anita. Você sabe do que eu estou falando - o rosto dele ficou mais preocupado ainda.
Eu não conseguia ver qual era a real gravidade de tudo aquilo, Ricardo tentou me agarrar, Mathias fez com que ele caísse fora e ponto final, não havia algo tão ruim naquilo tudo.
- Ricardo? O que ele poderia fazer de tão grave? - o mistério da conversa me afligia.
- Ricardo é um verme!
Fiz uma careta para ele, não entendia o ódio que ele demonstrava sentir enquanto falava.
- Ah, você não sabe mesmo - afirmou.
- Vai me contar ou o vou ter que ir embora para pesquisar no Google? - saí de baixo dos seus braços e sentei de frente para ele.
- Ano passado, antes de você começar o estágio, Ricardo foi acusado de abuso sexual - eu via a repulsa nos olhos de Mathias. - Não sei exatamente onde e como foi, a única coisa que ficamos sabendo é que ele realmente era culpado e ninguém duvidou disso, pois todo mundo sabia que ele bebia demais e, eventualmente drogava-se.
As órbitas dos meus olhos quase caíram para fora. A estranheza de Ricardo não era novidade para ninguém, mas enlouquecer e abusar sexualmente de alguém era mais que estranheza, era doença.
- Ele não foi preso? - eu estava chocada.
- Foi, mas logo foi solto, os pais dele são ricos, não deve ter passado uma noite na cadeia. O assunto é proibido dentro da agência, porque como você deve saber Ricardo é filho dos donos.
- Eu não sabia, não fazia a menor idéia, não sabia de nada disso.
Era esse o motivo de todo o mistério, Ricardo não queria que eu descobrisse o passado dele, por isso sumia quando eu perguntava algo que pudesse entregar tudo. As poucas vezes que o encontrei na agência contou-me alguma história sobre divulgação de shows e foi embora. Esse era o x da questão, o passado.
- Então era isso! - exclamei.
- Isso o quê? - perguntou Mathias.
- Era por isso que ele fugia de toda e qualquer pergunta que eu fazia - isso não era bem uma resposta a Mathias, mas sim uma resposta a mim mesma.
- Há quanto tempo você conversa com esse monstro? - perguntou assustado.
- Sei lá, antes da agência ainda. Ele sempre freqüentou os mesmos lugares que eu, mas a gente não conversava muito, não sei como explicar, alguma coisa sempre me repelia dele, foram sempre conversas curtas e se ele não fugisse com alguma pergunta minha, eu sentia um medo inexplicável e desaparecia antes que ele pudesse responder.
A confusão que passou pelos olhos me Mathias não era a metade da confusão que se debatia dentro de minha cabeça.
- Essa foi a primeira vez que ele tentou te pegar a força?
- Foi e acho que ele não me machucaria - disse.
- Por quê? Iria bater nele? - zombou.
- Não - estava pensando demais para rir das piadinhas dele. - Ele gosta de mim.
Mathias pareceu chocado, seu rosto ficou severo como se tivesse ouvido um insulto.
- Gosta de você? Ele te persegue, te observa enquanto você trabalha, ninguém me contou eu o vi parado no corredor olhando para você. Vai dizer que nunca o viu lá parado feito um ás de paus? - esbravejou.

[Continua...]