- Não, claro que não. Você está me deixando assustada.
Nunca o vi parado lá, apenas o vi algumas vezes dentro da agência e sempre acreditei que ele fizesse algum trabalho lá. Só de imaginar ele atrás de mim, com os olhos verdes fixos, prestando atenção no que eu fazia, meu coração acelerou e senti um medo horrível, minhas mãos começaram a suar e meus olhos ficaram mais arregalados ainda.
- Tudo bem, Anita, não vai acontecer nada com você - afirmou.
- Quem disse isso? Se ele for tão louco como parece agora vai me matar e vender meu rim - falava tão rápido que talvez Mathias nem entendesse.
- Não surta - pegou-me pelo braço. - Ele não vai fazer nada e também não chegará mais perto de você.
- Não? - perguntei quase triste.
Se ele não se aproximasse mais como eu perguntaria se tudo era verdade? Como eu saberia o que aconteceu?
- Você se importa? - perguntou desconfiado.
- Não! - respondi, mas no fundo me importava.
Mesmo que ele sumisse durante meses e toda vez que aparecesse deixasse uma lacuna de quase loucura, eu sentiria falta da perturbação. Não sei quanto tempo se passou depois da minha resposta, nós ficamos em silêncio, eu olhava fixamente para o palco fingindo estar interessada. Pensei em como seria viver sem a surpresa que ele causava em mim e no momento em que o desespero começava tomar conta da parte racional do meu cérebro um dos amigos de Mathias nos encontrou.
- Vocês! - gritou ele.
Nós olhamos rápido, assustados pela quebra inesperada de nossos pensamentos.
- Você! - sorri para ele. Pela primeira vez nessa noite eu me sentia alegre ao ver algum deles.
- Nós quase morremos procurando vocês, onde estavam?
- Anita estava ajudando uma amiga bêbada e nós tivemos que levá-la para casa. Foi mal não ter avisado vocês, mas se nós demorássemos mais um pouco aqui dentro, teria vômito pelas paredes agora - Mathias disse rindo.
- A coisa não tava muito boa para ela - ri de minha amiga imaginária.
Ele riu conosco e nos convidou a voltar à mesa com todo mundo e agora eu não poderia protestar fui e agi como uma pessoa normal durante o resto da noite.
Era tarde, ou melhor, cedo quando deixamos o bar, estava quase amanhecendo e o cantar dos pássaros entrava nos meus tímpanos. Mathias parou o carro na frente do meu prédio e se desculpou pelo que tinha dito.
- Tudo bem, Mathias, a culpa não é só sua eu exagerei - assumir que também era culpada não feria meu ego.
Ele piscou, não como um tic nervoso, mas assentindo, concordando sem palavras. Parecia ter mais cautela com as palavras agora. Ia soltar o sinto de segurança para sair do carro, mas sua mão prendeu a minha, levantei os olhos para olhá-lo e sua expressão era ilegível.
- O quê? - perguntei.
- Apesar de tudo, foi bom hoje, você até que é divertidinha - deu um sorriso debochado.
- Não te prometi diversão - ri dele. – Conflitos a parte eu gostei também. Ah e seus amigos não são dos piores.
- Eles gostaram de você - deslizou o dedo indicador em minha bochecha.
- Óbvio que gostaram, eu sou irresistível - ri.
- Você é - aproximou o rosto do meu.
- Wooow - disse com sua boca já na minha.
Despedi-me dele desejando que a noite não acabasse, que o sol não nascesse, que os pássaros se calassem e nós tivéssemos mais algumas horas juntos. Abri o portão e quando estava no meio do caminho até a porta ele gritou:
- Anita!
- Ahn? - girei o corpo para olhar para ele.
- Tchau - acenou e sorriu.
- Tchau, Mathias - joguei um beijo para ele e entrei.
Entrei no prédio, passei na ponta dos pés pelo porteiro que dormia debruçado sobre a mesa, subi as escadas e olhei para a placa e me rendi, suspirei por ter perdido a batalha e acendi um cigarro. Se alguém passasse ali àquela hora e me visse, eu só precisaria esperar a multa no final do mês. Venha multa, nem ligo.
Estava cansada demais para pensar nas coisas que tinham acontecido essa noite, complicação demais para um dia só e Mathias podia dizer quantas vezes quisesse que Ricardo não voltaria ou que não o veria mais, mas eu sabia que mais dia, menos dia ele estaria em alguma esquina para bater-se de frente comigo. Não era medo o que eu sentia, era ansiedade, queria adivinhar como as coisas iam ser. A ansiedade de agora era a mesma que assolava meus pensamentos todas as vezes que ele ia embora.
Apaguei o cigarro no solado do sapato e subi até meu apartamento e o susto que levei foi memorável, voltei para as escadas. Não podia acreditar. Espiei pelo canto da porta e era verdade. Corri escada abaixo, queria gritar por socorro ou encontrar uma barra de ferro para me defender, cheguei à portaria, olhei em volta e não tinha nada que eu pudesse usar. Meu coração acelerava a cada segundo e eu me sentia cada vez mais desprotegida.
O porteiro ainda dormia, mas que maldito sono pesado era esse, passei por ele, fui até a porta na esperança de Mathias ter permanecido ali por mais de dez minutos, inútil, a rua estava vazia, então engolindo o pavor de encará-lo novamente subi as escadas e andei lentamente em sua direção. Ele era surreal.
- Ricardo, hey Ricardo, acorda! - chacoalhava o com força.
Ele despertou assustado, perdido, acho que não tinha consciência de onde estava.
- Ah, Anita - sussurrou e envolveu-me em seus braços. - Desculpa, diz que me desculpa! Me perdoa, eu não fiz por mal.
Cada vez seu abraço ficava mais forte e os pedidos mais lamuriosos, senti algo escorrendo em meu ombro. Ele estava chorando, oh meu deus, por que chorava tanto?
- Calma, não precisa disso tudo - limpei as lágrimas de seu rosto.
- Você não vai acreditar em mim nunca, nunca. Vai gritar, chamar a polícia, não vai me deixar falar - as lágrimas vertiam de seus olhos. - Você tem nojo de mim, me olhou com raiva antes.
- Chega dessa histeria, criatura! - falei baixo, não podia gritar e acordar todo mundo.
Ele se afastou de mim, seu corpo deslizou até o outro lado da porta e em seus olhos havia medo, medo de verdade, medo que paralisa.
- O que você quer me dizer? Porque eu não vou acreditar? Eu não tenho nojo de você - eu não me reconhecia com aquela calma toda.
Ele baixou a cabeça, as bochechas rubras em razão do choro.
- Eu imagino o que Mathias te disse - seus olhos estavam mais verdes do que nunca.
- Mathias falou o que foi espalhado por toda a agência.
- Mas é mentira! - disse com os fixos em mim.
- Quem prova isso? - perguntei.
Ele continuava encolhido do outro lado da minha porta com as mãos apoiadas no chão e a cabeça quase encostado aos joelhos.
- Você não vai falar? Se não for vou entrar e vasculhar os jornais, revistas e sites e descobrirei sozinha, sendo assim eu posso tirar minhas próprias conclusões. No momento tudo que eu sei é que você “é um monstro, um verme e me observa enquanto trabalho” - mudei a entonação da voz para que ele percebesse que aquelas eram palavras de outra pessoa.
Endireitou o corpo e prestava plena atenção em mim quando voltei a olhá-lo.
- Você realmente quer saber?
- Sem dúvidas e se você puder começar logo eu agradeço - acomodei-me no chão com as costas apoiadas na parede.
- “Aconteceu há mais ou menos dois anos, eu estava no interior em um festival de rock do qual eu havia participado da divulgação. Era começo de dezembro, um calor infernal. No início eu fiquei apenas “por trás das cortinas” ajudando no que era necessário, o festival começou na sexta e terminaria no domingo, havia bastante gente por lá, todo canto que se olhava tinha barracas montadas e pessoas já bêbadas ao redor delas” – olhava fixo para parede a nossa frente.
Eu estava cada vez mais nervosa e ele falava tão pausadamente que tinha vontade de esganá-lo, mas não o interrompi.
- “As coisas foram bem durante a sexta-feira, não tivemos nenhum transtorno e lá por duas da madrugada meu trabalho acabou. Não tinha bebido o dia todo, não podia fazer nenhuma merda enquanto eu fosse o responsável, o meu já estava na reta, se cometesse o menor deslize iam me chutar da equipe de divulgação e organização. Passei a granada para o outro cara e fui para frente do palco assistir os shows e beber com meus amigos.
A penúltima banda subiu ao palco às quatro horas da manhã, eu estava doidão lá, pulando, batendo cabeça até a hora em que ela apareceu. Era linda, cabelo escuro, pele clara, vestia uma mini saia, uma blusa justa que acompanhava as curvas de seu corpo e seus coturnos estavam sujos de barro, pois tinha chovido durante a tarde.
- Ô cara - disse olhando para mim.
- Eu? - apontei o dedo indicador para mim mesmo.
- É, tu mesmo. Tem fogo? - balançou o cigarro entre os dedos.
Alcancei o isqueiro para ela e ao devolver-me segurou minha mão.
- Eu sou Paola e você?
- Não, eu não sou - eu ri, ela riu e ficamos ali conversando.
A partir daí tudo fluiu normalmente, fomos para a barraca dela, ficamos lá as coisas começaram a esquentar e então...” – o interrompi antes do final da frase.
- Os detalhes mais sórdidos não me interessam, pode passar essa parte - franzi a testa .
- Tudo bem - ele sorriu.
Sua expressão era mais calma agora, parecia aliviado, mas não tinha como disfarçar o cansaço e o sono que quase fechavam seus olhos.
- “Bom, quando acordei às onze horas de sábado ela não estava mais na barraca, levantei e tentei procurar por ela, não a encontrei e ninguém ali tinha a visto, ela voltou para casa, ao menos foi isso que ela disse a polícia.
Na segunda-feira após o festival, um oficial de justiça bateu na minha casa trazendo uma intimação para que eu comparecesse a delegacia e blá blá blá - revirou os olhos. - Fui até lá e a encontrei com a cara inchada de tanto chorar, os olhos vermelhos, sentada em um banco encostada a parede meio encolhida. Quando me viu entrando desabou em um choro incontido, completamente desesperada, foi aí que eu me apavorei, não sabia o que estava acontecendo nem o porque da garota estar lá” - parecia indignado.
- Xiii, mais baixo, vai acordar meus vizinhos.
- Desculpa, ainda não sei lidar com isso, foi injusto, Anita. Nunca forçaria ninguém a isso, ela quis, ela foi até mim - balançava a cabeça com irritação.
- Ainda falta o final - disse.
- “Ela era menor de idade, mas não parecia, tinha dezesseis anos, disse à família que eu tinha a forçado, revirou minhas coisas enquanto eu dormia, pegou minha identidade anotou meu nome completo e fez a denúncia. Eu contei minha versão da história, mas ninguém acreditou. Tive que pagar fiança para sair de lá e foi isso, é essa a verdade” - observava decepcionado a expressão em meu rosto.
- Você não acredita, não é? - perguntou.
- Não acho que você tenha a forçado, eu sei como as coisas são no mundo em que a gente vive, só não entendo porque e ela te denunciou - analisava os fatos de todos os ângulos.
- Ela disse que eu a forcei, mas não o fiz, juro que não, jurei ao delegado, ao juiz, ao meu pai, mas eu sou o bêbado rebelde cheio de testosterona, eles não acreditam - algo ardia em seus olhos, um sentimento múltiplo.
Nada parecia mentira, ele era convincente havia uma sombra de tristeza em sua voz.
- Por que você me observava na agência? - perguntei, sem ligar para a continuidade da conversa.
- Eu não podia chegar perto de você, pois toda vez que eu me aproximava você vinha cheia de perguntas e eu não podia respondê-las, pois você descobriria, como descobriu essa noite, as coisas que pensam de mim e fugiria com nojo. Eu me importo com o que você pensa, eu te observei sim e te segui algumas vezes - revelou sem nenhuma vergonha de tê-lo feito.
- Foi atrás de mim por quê? - estava surpresa.
- Quando você parecia triste eu andava devagar atrás de você e causava um daqueles encontros ocasionais, queria estar perto, mas tinha medo do que você pensaria - seus olhos estavam novamente cheios de lágrimas.
- Você é louco - exclamei incrédula.
- Estou sendo sincero, minha intenção não era te assustar, mas se é a verdade que você quer aqui está a verdade. Eu vivo com um fantasma nas minhas costas há dois anos e não acho que vou me livrar dele com o tempo, eu sou um monstro para as pessoas, um verme como lhe disse Mathias, eu só queria que você soubesse a minha versão dos fatos para não ter de esconder-me mais e é só isso, Anita - levantou-se.
- O que está fazendo?
- Indo embora – disse.
- Não, espera, sente-se. Eu acredito em você, pode parecer absurdo para Mathias e aos outros, mas eu acredito em você. Não existia razão para você ter vindo até aqui esta hora da manhã, você não tinha nenhuma obrigação comigo, mas veio porque se importa - um sorriso escapou de minha boca.
Ele sentou-se ao meu lado e me abraçou.
- Ninguém mais importa Anita, você é a pequena do meu coração - cochichou em meu ouvido.
- Conta como é me seguir - pedi.
Ele riu e deslizou até meu colo.
- Aham. Posso? - seus olhos verdes quase suplicantes.
- Deita.
Mexi em seu cabelo liso e escuro como a noite. O som de sua voz embalou meu sono e ali adormecemos, no mármore gelado do chão do corredor.
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