segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Dentro de Você - Meio

Olhei em sua direção e senti certo alívio ao ver seu rosto. Lucas era nosso amigo há anos e participava do nosso universo, sempre esteve próximo antes de ir morar na Europa após o termino da faculdade.
Eu ainda não havia largado a mão de Levi quando ele me abraçou forte e beijou meu rosto.
- Sinto muito, Rô – seus olhos estavam cheios d’água.
- Eu também – enfiei o rosto em seu ombro e me agarrei a ele.
Choramos juntos por algum tempo.
Lucas e Levi estudaram juntos desde o tempo de criança até a faculdade, o elo entre os dois era muito forte e mesmo com o afastamento de Lucas os dois mantinham contato quase que diariamente. Eram praticamente irmãos e quando nos conhecemos eu era a mascote deles, foi a época gloriosa de nossas vidas, tínhamos quatorze anos e tudo era divertido e desafiador, nos conhecemos na escola no meio da oitava série quando eu mudei para a cidade e desde então permanecemos unidos como uma mini família de adolescentes, uma irmandade imatura que cresceu com o tempo, que aprendeu a ser “gente grande” e Levi odiava ser gente grande, dizia que gostaria de ter 15 anos pro resto da vida assim nós não teríamos que nos preocupar em ser responsáveis ou trabalhar para comer.
- Eu vou cuidar dela, cara – disse Lucas debruçando-se sobre o caixão. – Vou ajudá-la a superar, você vai fazer falta.
Sua mão segurava a minha e eu segurava a mão gélida de Levi.
- Quer ir um pouco lá para fora, Rô? – perguntou Lucas.
- Não! Vou ficar aqui com ele, pode ir.
Beijou o rosto do amigo morto e saiu.
Olhar para ele ali, imóvel e não poder fazer nada era muito mais que doloroso.
Meia hora se passou e um padre entrou na capela, Levi era católico, Lucas e eu não víamos fundamentos para acreditar na religião.
O padre pediu para que todos se reunissem para que fosse rezada uma pequena missa e logo Lucas entrou e ficou ao meu lado. Enquanto a missa acontecia desliguei-me do mundo fiquei o tempo todo acariciando o rosto e os cabelos da minha metade que permanecia inanimada dentro daquele caixão, minhas lágrimas pingavam sobre ele e umedeciam o colarinho de sua blusa azul que eu havia dado em seu último aniversário.
Fez vinte e três anos no verão passado e comemoramos nosso aniversário juntos, pois era apenas dez dias mais velho que eu.
Por menor que fossem as lembranças enchiam minha cabeça e tornavam-se um imã para outras milhões delas, lembranças felizes dos nove anos que passamos juntos. Isso me tirava da dor, fazia com que eu o esquecesse ali deitado, frio com o ritmo cardíaco esquecido.
- Está na hora – disse Lucas puxando-me para trás.
- Hora de que? – fiz com que ele me largasse.
- Eles vão fechar o caixão.
- Não! Gritei. – Não o tranquem aí, ele odeia lugares fechados, não o tranquem, por favor.
O padre veio até mim e colocou a mão em meu ombro.
- Acalme-se, minha filha. Agora é a hora dele, foi a vontade de Deus.
Uma raiva enorme subiu pelo meu corpo, meus dentes trincaram e meus olhos quase foram ejetados de meu rosto.
- O seu Deus o levou e não há nada que você diga que possa amenizar essa perda. Que Deus é esse que mata um inocente sem mais nem menos?
- Acalme-se, filha – repetiu o padre.
- Não peça para que eu me acalme se não sabe o que eu sinto.
- Deus o... – tentou continuar.
- Engula o seu Deus – dei as costas ao padre.
Voltei para o lado de Levi, olhei seu rosto mais uma vez e beijei-o.
- Desculpe! Você sabe que nunca acreditei – beijei-o novamente.
Seu pai e outros homens estavam pegando a tampa do caixão e caminhando até ele.
Segurei firme suas mãos e cochichei em seu ouvido:
- Vai ficar tudo bem, não é tão apertado quando parece, vou estar por perto – uma lágrima escorreu do meu rosto para o dele. – Eu te amo!
Foi a última coisa que disse a ele em vida na sacada de minha casa sobre os degraus de pedra e agora a última coisa antes de trancarem seu caixão.
Meu coração rufava dentro do peito ao vê-los trancando-o lá dentro, ele tinha tanto medo de lugares fechados, odiava elevadores ou qualquer outro lugar que pudesse ficar trancado e nunca chaveava portas nem trancava janelas.
Peguei em uma alça de seu caixão. Eu ajudaria a carregá-lo.
- Você vem? – perguntei a Lucas.
Ele assentiu, pegou outra alça ao meu lado e então iniciamos a nossa última caminhada a três, a última vez que andaríamos lado a lado.
Não lembro o peso de seu caixão nem se fazia frio enquanto andávamos, só o que recordo é do sofrimento e de como as lágrimas cortavam meu rosto ao carregar meu noivo para o sepulcro. Lucas olhou para mim e disse sem som algum para que levantasse minha cabeça e encarasse aquilo e foi o que fiz. Respirei fundo, levantei minha cabeça e andei, mantive o foco mesmo com as lágrimas embaçando minha visão, segui e naquele exato momento a emoção que brotou foi algo parecido com o orgulho que sentia quando andava com Levi pelas ruas da cidade. Eu tinha o privilégio de tê-lo, aquele ser fantástico me amava como todas suas forças, independente das circunstancias e nada no mundo poderia mudar isso, nem a morte.
Chegamos até a sua cova e a claustrofobia dele berrava dentro de mim, não queria colocá-lo ali, não queria que o tapassem com terra.
- Lucas você não pode deixar que façam isso – agarrei-o pelos braços. – Ele tem medo, você sabe. Você estava junto aquela vez que o elevador parou e ele desmaiou de medo. Diga para pararem.
- Roberta, ele-está-morto – sua voz era ríspida.
- Mas e se... E se ele acordar de repente e se voltar a viver? – soluçava baixo ao falar.
- Ele não vai ressuscitar. Ele está morto, os órgãos dele foram doados. Ele está morto – seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas ainda assim eram duros.
Limpei as lágrimas que escorriam pelo meu rosto e voltei para perto do caixão. Mais uma vez o padre falava sobre o quanto Levi tinha sido bom filho, bom amigo e bom companheiro durante a vida e eu me perguntava o porquê de dizer tudo aquilo se nem mesmo o conhecia, ele não era bom, era extraordinário, a melhor pessoa, o coração mais puro que eu já conheci.
Se eu pudesse teria mandado aquele padre calar sua santa boca ou lavá-la antes de falar de Levi, mas eu já tinha recuperado meu juízo naquele momento ou entrado em choque completo, pois já não chorava só sentia raiva de tudo e de todos, não queria ninguém perto de mim, que fossem todos embora, eu o enterraria se fosse preciso, entraria junto no caixão se ele sentisse medo, não iria embora nunca.
Posicionaram as cordas para levar seu caixão ao fundo da cova, não suportava aquilo. Andei até ele e pus a rosa vermelha sobre seu caixão.
- Esta tudo bem, não tenha medo – o desespero se debatia dentro de mim e eu tinha vontade de urrar minha dor à todos. – Eu vou te encontrar em algum lugar.
Não esperei para ver seu caixão sendo baixado, não deixaria que jogassem terra sobre ele se estivesse por perto, então saí e observei-os de longe sentada em um banco debaixo de uma árvore ainda nua pelo frio rigoroso do inverno. Distante eu sentia a revolta diminuir, pensava nele ainda presente e girava sua aliança, agora em meu dedo juntamente com a minha.
Um cheiro forte trazido pelo vento fez meu estomago vazio embrulhar, vomitei o nada que havia comido e me senti fraca. Vi ao longe que as pessoas estavam indo embora lentamente e Lucas vindo até mim, sentou-se ao meu lado sem dizer uma palavra e em silêncio permanecemos por algum tempo.
- Desculpe – disse ele.
- Tudo bem!
- Você passou mal?
- Sim – não tinha muitas palavras.
- Vamos embora então – sugeriu.
- Não, quero ficar mais um pouco – eu disse.
Ficamos ali sentados sem dizer nenhuma palavra com o queixo apoiado nas mãos até o céu empalidecer.
- Levi chorou quando você foi embora – disse a Lucas.
- Ele chorou na sala de espera da emergência quando aquele fusca atropelou você – riu.
- O pavor dele quando me juntou do chão foi terrível, achei que ele fosse ter um treco antes de mim.
- Vocês dois pareciam de cera quando cheguei a emergência do hospital. Levi estava sem camisa, cheio de sangue nos braços, segurando a camiseta contra o corte na sua cabeça e você toda arrebentada deitada naquela maca.
- Tenho a cicatriz ainda – passei a mão no corte no lado direito da minha testa, próximo a sobrancelha. – Poderia ter sido eu ao invés dele.
A melancolia chegou como uma enxurrada em cima das lembranças.
- Ele não aguentaria – disse Lucas.
- Eu não vou aguentar – confessei.

[ Continua ]

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