- Eu tinha aonde me apoiar antes – uma lágrima escorreu solitária por meu rosto.
Lucas não tinha mais o que dizer e o silêncio se fez presente mais uma vez.
O vento ficava mais forte com o entardecer e o frio mais intenso, meu queixo batia e eu tremia com o ar gélido.
- Estou com frio –disse.
- Quer ir agora? – perguntou Lucas.
- Não quero deixá-lo aqui – uma máscara de dor tomava meu rosto toda vez que eu pensava em abandoná-lo naquele cemitério.
- Uma hora você vai ter que ir.
- Eu sei. Vamos ficar mais uns minutos. Quero deixar velas para ele, logo vai escurecer.
Levantei e fui em direção a seu túmulo. Lucas seguiu-me.
Tirei da bolsa dois sacos de velas e acendi todas ao lado de seu túmulo aonde o vento não chegava para apagá-las.
- Não vai ficar tão escuro agora, amor – falei olhando seu túmulo.
- Medroso – disse Lucas.
Repreendi com um olhar e ele sorriu tristemente.
Nós deixamos o cemitério quando a luz do dia já tinha partido e a relutância dos meus sentidos deixou-me estagnada ao portão.
- Vou ficar – disse chorando.
- Amanhã a gente volta.
- Promete?
- Prometo – abraçou-me e praticamente me carregou até o carro.
Meu quarto era tão vazio sem os barulhos constantes que ele fazia e sua risada infantil, não fiquei no quarto por muito tempo, lá dentro a ausência se fazia maior.
Comi duas colheradas de uma sopa ruim e fiquei até às quatro horas da manhã no sofá olhando para os miniburacos no teto branco, contando e recontando tentando formar figuras ligando um ao outro e quando as retas formaram um L resolvi levantar-me e ir para cama.
Vesti um travesseiro com a camisa que ele havia esquecido ali, afundei meu rosto nele para que todo o perfume entrasse por minhas narinas e chorei baixinho até entrar no estágio de quase sono.
Foi aí que eu senti uma esperança surgindo dentro de mim, uma luz vindo lá do outro lado da galáxia.
- Bibs – ouvi.
Só uma pessoa no mundo me chamava assim e essa pessoa havia morrido.
- Levi? Perguntei sentando na cama.
Precisei de alguns segundos para minha visão acostumar-se com o breu total e não havia nada lá dentro além de móveis e roupas espalhadas. Acendi o abajur, olhei em volta e nada, bom, eu deveria estar delirando.
Levantei e fui até a cozinha pegar um copo d’água e em minha geladeira ainda estava colado seu bilhete carinhosamente debochado: “Fui comprar sorvete. Não chore, eu volto logo”. E embaixo dele eu havia escrito “eu sobrevivo”. Que irônico ler isso agora, não sei quanto mais eu sobreviverei, esperar que ele voltasse do mercado, do trabalho ou da sorveteria era fácil, mas agora ele não voltaria e eu não sabia como agir diante dessa falta desesperadora.
Retornei ao quarto envolta em todos esses pensamentos, abracei o travesseiro onde estava sua camisa e fiquei pensando em como sobreviver, por quem e porquê seguir. Eu não tinha razões para seguir, queria ficar no passado, vivê-lo novamente, não queria uma vida e um mundo onde Levi não existisse e mais uma vez eu chorei por incontáveis minutos afogando-me em soluços desesperados e grunhidos de dor.
Nenhuma perda na minha vida inteira se comparava a essa, nenhuma dor poderia ser maior, eu estava tão sufocada e tão desesperada que não respondia mais por mim, gritava com o rosto enfiado no travesseiro, suplicava para que voltasse, para que fizesse parar, para dizer que iria ficar e nunca mais partiria.
Nada aconteceu, foi tudo em vão e aquela desgraça corroia-me por dentro, como se fosse ácido sulfúrico.
Minhas forças estavam se esvaindo e eu fiquei encolhida e imóvel apenas sentido as lágrimas caírem dos meus olhos e molharem o travesseiro até a exaustão me nocautear e pregar meus olhos.
Na manhã seguinte o toque alto do telefone despertou-me e por um segundo imaginei que fosse Levi para me desejar um bom dia e me fazer ter certeza de que tudo aquilo tinha sido um pesadelo, mas a realidade se fez presente.
- Alô?
- Oi Rô! Sou eu, Lucas.
- Ah, claro.
- Liguei para saber como você está – disse.
- Viva, infelizmente.
- Não fala assim, você vai conseguir.
- Não quero falar sobre isso.
- Ok, você quer voltar lá hoje? – perguntou.
- Sim – assenti.
Duas horas depois Lucas chegou para voltarmos ao cemitério.
- Quero ir sozinha – disse a ele quando chegamos ao portão.
- Tá, eu espero no carro.
Andei até seu tumulo segurando o choro que se amontoava em minha garganta.
Sentei em cima do tumulo com as pernas cruzadas e olhei por algum tempo a foto sobre o epitáfio.
- Oi – disse a ele que jazia lá no fundo. - Espero que não seja tão ruim aí, senti-me feliz ontem quando ouvi tua voz me chamando, queria ter ido junto, não quero ficar aqui sozinha, tenho medo do mundo sem você.
As palavras saiam salgadas com as lágrimas que escorriam face a baixo.
- Ah, desculpa por ter dito aquelas coisas ao padre ontem, eu sei que te chateia a minha descrença, mas eu espero do fundo do meu coração que você tenha encontrado o teu céu e que nele haja todos aqueles anjos bonitos que descrevem os livros.
Fiquei sentada lá mais de uma hora e até o resultado dos jogos e os recados dos amigos eu contei a ele entre uma crise de choro e outra, então resolvi que era hora de voltar, acendi outro pacote de velas e voltei para o carro lutando contra a insanidade que queria que meus pés girassem e voltassem para ficar com ele.
Os dias que se passaram foram longos como anos, toda amanhã eu ia até o cemitério e conversava com ele, as vezes voltava escondida a tarde e pulava a grade lateral se o portão estivesse trancado, precisava conversar com ele, pois eu não tinha mais ninguém que pudesse compreender a dor que arruinava meu ser.
Quando voltava do cemitério vestia suas roupas que estavam na minha casa e borrifava seu perfume nos cômodos e com o chegar da noite as coisas se complicavam, às 20 horas quando ele deveria chegar do trabalho não havia barulho de chaves na minha porta, nem músicas assoviadas vindo do começo do corredor e o silêncio que se instalava dentro de casa era aterrador.
Antes de dormir eu conversava com as paredes imaginando que ele pudesse me escutar, pedia que voltasse ou que me levasse junto e mais uma vez chorava incontrolavelmente até que o sono me derrubasse, levando-me para mais uma madrugada desesperadora de pesadelos terríveis.
No décimo dia após sua morte acordei aturdida em razão de algum pesadelo repetido. Eram sete horas da manhã, cedo demais para Lucas vir me buscar, então resolvi ir sozinha até o cemitério.
Caminhei por quase duas horas para chegar até lá, o portão já estava aberto e minhas pernas sabiam qual caminho deveriam seguir.
- Oi Levi – minha garganta ainda tinha aquele nó que não se desfazia por nada.
Sentei-me em seu túmulo e ali permaneci quieta por um tempo, não tinha muito a dizer a ele essa manhã. Girava sua aliança em meu dedo quando o ouvi novamente.
- Bibs – chamava.
- Aqui! Disse levantando e olhando ao redor.
Seria possível encontrá-lo? Daria minha vida por isso.
Caminhei por entre túmulos procurando por ele enquanto sua voz ressoava em minha cabeça.
Agora eu corria por entre túmulos e jazigos atrás de um rastro que fosse e mais uma vez sua voz me surpreendeu.
- Escute – disse.
Minhas pernas travaram bruscamente e eu fiquei imóvel.
- Onde você está? Por favor, Levi, apareça e leve-me com você. Por favor.
Não respondia minha perguntas, apenas repetia.
- Escute, preciso que escute.
Foi o que eu fiz, detive-me ao som que vinha de algum lugar e quando estava completamente atenta ele disse:
- Dentro de você está a razão para continuar, dentro de você.
E foi só, não havia mais som algum no cemitério e aquelas palavras ficaram martelando na minha cabeça enquanto eu andava feito uma louca até a saída.
Passei pelo vigia repetindo as palavras que tinha escutado, elas não faziam sentido para mim.
Caminhei por ruas ermas até chegar à avenida, minhas pernas iam sozinhas enquanto minha mente continuava imersa em suas palavras.
Não vi de qual lado o carro veio, só ouvi o som dos pneus freando no asfalto e depois escuridão total.
Vi Levi sorrindo e repetindo as palavras que havia dito no cemitério, não podia tocá-lo, mas sabia que estava ali comigo.
- Moça, moça – uma voz carregou-me para longe de Levi.
Meus olhos abriram e eu reconheci aquele lugar. A emergência do hospital.
Tentei erguer-me, mas uma enfermeira não deixou com que eu o fizesse.
- Como é seu nome?
- Roberta Bertoncelli – respondi.
- Quantos anos você tem?
- 23.
- Nós não conseguimos entrar em contando com nenhum conhecido seu, pois seu celular precisa de senha para ser ligado.
- A senha é 1526. Ligue para Lucas, seu número está nas chamadas efetuadas.
- Ok! Chamaremos ele.
- O que aconteceu comigo? – perguntei.
Ainda estava confusa, com as palavras de Levi se repetindo em minha cabeça que doía.
- Você foi atropelada na avenida principal por um carro em alta velocidade, mas está tudo bem com você e com o seu bebê.
- Bebê?
E mais uma vez sua voz ecoou em minha cabeça: "dentro de você".
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