“Eu quero saber o que tem depois do precipício, sem receio algum, com passos firmes eu vou de encontro a ele. A curiosidade assassina me tenta em qualquer estrada.
Eu deixei minha vida escorregar por entre os dedos como um tufão de vento quente que veio do norte, já vi o suficiente. Não existe algo que eu realmente queira fazer agora, pois quando sento aqui na beira do precipício e vejo que as ondas quebram descontroladamente nas pedras, eu tenho a real sensação de que não há mais nada, mais ninguém. Prevalece a vontade de permanecer”.
- E é isso, encontrei esse pedaço de papel na praia – disse.
- Sério? Sem nenhum rastro?
- Sim, nada que indicasse quem tinha deixado ali.
- Porra, Camilo, só acontece coisa estranha nessa tua vida – ri.
- Cala boca, guria – deu um tapa na minha cabeça.
Ficamos sentados na areia esperando que o sol nascesse completamente.
Camilo lia e relia aquele pedaço de papel amarelo, escrito por algum depressivo descompensado.
- Tá tentando decorar isso?
- Não, piadista. Queria descobrir quem escreveu – falava olhando fixo para o papel.
- Coleta as digitais.
- Não entendo como você pode falar tanta besteira, Bárbara. Essa tua cabeça é um poço de imbecilidade – quase berrou de irritação.
- Ooook, tá morta quem falou.
Levantei, tirei o vestido e corri para o mar rindo dele. Só corri para que ele não pudesse ver como era divertido deixá-lo assim.
Camilo poderia ser padre se quisesse, pois toda a sua seriedade com relação as coisas, ao mundo, as pessoas, aos animais era clerical e i-n-s-u-p-o-r-t-á-v-e-l.
- Qual é Bárbara? – gritou correndo atrás de mim.
- Sai, sai! Vai ler teu bilhete misterioso – desprezei-o.
Mergulhei fundo para tentar fugir dele, mas quando voltei à superfície ele estava esperando com uma cara de reprovação.
- Muito bom para alguém que tem medo de tubarões.
- Só tenho medo dos tubarões do Discovery.
Então ele riu, parecia livre quando ria jogando a cabeça pra trás, nem de longe lembrava o Camilo clerical, seu riso era lascivo e seus olhos tornavam-se maliciosos. Quando ele ria nós éramos iguais, dois monstrinhos de pele clara, cabelos escuros e olhos negros de puro escárnio.
- Você está tremendo – disse jogando água nele.
- Não, Babi! Essa água está muito gelada – encolheu-se de frio.
- Ahh, fresco!
Joguei mais água nele e sem que eu pensasse em me defender, lançou-se contra mim e arrastou-me para o fundo.
Eu via as bolhas de ar saindo de minha boca e subindo em espiral até a superfície, enquanto a água invadia meus pulmões. Mas logo seus braços afrouxaram e eu subi junto delas.
- MONSTRO – gritei.
Tossi, cuspindo água e ele me olhava segurando uma gargalhada que se formava em seu peito.
- Idiota! Você é o maior idiota de todo o litoral.
Eu estava muito brava e continuava tossindo, meu nariz ardia e meus olhos lacrimejavam por conta do sal.
- Desculpa – disse quase rindo.
- Acho bom você nem falar comigo, desgraça.
Andei em direção a areia, atravessando as ondas e desviando das algas.
Alcancei meu vestido, o chacoalhei para retirar toda a areia dele e o vesti. Camilo saia do mar com um sorriso cadeado atrás dos lábios.
- Pode rir – disse.
Sua camiseta estava ao meu lado e quando ele estava quase se abaixando para juntá-la, a vontade foi maior que eu e chutei toda a areia possível sobre ela, Camilo parou de andar e me encarou com aquela cara sonsa de reprovação constante e eu sorri para ele.
- Bom dia, Camilo – comecei a andar. Ah! Não esqueça teu bilhete interessantíssimo.
Ele bufou e resmungou alguma coisa enquanto limpava a areia da camisa, eu segui pelo calçadão.
Andei rápido até dobrar a esquina para que não me alcançasse, mas ele era mais rápido e nosso caminho era o mesmo, pois estávamos em casas vizinhas. Duas casas depois da esquina ouvi seus passos atrás de mim, era cedo demais e não havia nenhum barulho além de nossos passos nervosos.
- Owww Barbi, não fiz por mal – rendeu-se atrás de mim.
Não respondi, continuei andando e não olhei trás para saber se estava longe ou perto.
- Não tem porque ficar sem falar comigo. Olha para mim, Bárbara.
Olhei rapidamente para ele, mas não parei.
Então ele correu e me pegou pelo braço.
- Não enche – disse a ele.
Tinha vontade de rir, ele era tão inocente que chegava a doer em mim.
- Era brincadeira.
- Você tem noção de quanto esperma de baleia eu engoli?!
Ele não saberia a resposta.
- Não, é você que assiste Discovery o dia todo.
Encarei-o e talvez parecesse que eu sentia raiva, porque ele recuou dois passos.
- Desculpa?
Desculpava-se como quem comete um crime e deliciava-me o brilho opaco de culpa em seus olhos.
- Tá! Tudo bem – disse. Vamos logo que eu quero dormir.
Caminhamos em silêncio por alguns minutos, até que o sono e o cansaço me pagassem pelas pernas, literalmente.
- Se andar mais devagar eu vou ter que andar para trás pra te acompanhar – disse.
- Eu cansei – a voz mais arrastada que meus pés - me carrega?
- E como se pede?
- Insuportável você – reclamei.
- Ah, certo! Vá andando então.
- Por favor – parecia tão dissimulada e cínica quando fazia o que ele pedia.
Se fossemos letras ele seria maiúscula e eu minúscula, logo poderia fazer minha vontade, e fez. Colocou-me em suas costas, assim como as macacas-mãe fazem com seus filhotes e me carregou rua a fora, até chegarmos ao portão.
- Está entregue – disse colocando-me no chão – consegue abrir a porta?
[ Continua ]
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