Havia várias pessoas ao redor de seu caixão quando entrei pela porta lateral daquela capela fria. As janelas estavam entreabertas para que houvesse um pouco de ventilação, mas o vento do final de julho era congelante. As chamas das velas oscilavam toda vez que o vento forte entrava por alguma das aberturas, permaneci a porta observando os rostos conhecidos e inchados de cada um deles, minha família postiça. Estavam tão imersos na dor da perda de alguém tão jovem que não notaram minha presença.
Não existia em mim forças para locomover-me, as mãos fechadas em punhos dentro dos bolsos de meu casaco, meus olhos ocultos atrás do óculos escuro, não queria vê-lo imóvel, frio, sem o rosado saudável que sua pele costumava ter, não podia, era covarde demais, não queria encará-lo dessa forma.
- Roberta! - senti uma mão em meu ombro.
Era Magda, tia dele, a grande culpada por termos nos encontrado. Ela tinha uma alegria natural que cobria-nos quando estávamos a sua volta, mas hoje até ela a mulher do rosto colorido aparentava uma morbidez em seu semblante, uma tristeza mortal.
Com a mão sobre meu ombro conduziu-me mais uma vez até ele, agora para o último encontro, para o adeus. Abria espaço por entre as outras pessoas como já havia feito anos atrás quando disse a ele que era de mim que ele precisava, alguém louca como eu. Todos a nossa volta olhavam-me com um pesar imenso, era lastimável tê-lo perdido tão cedo.
A sua cabeceira estavam o pai e a mãe, separados há anos, unidos agora pela dor de ter um filho morto. Era dolorosa a semelhança entre ele e o pai, seus rostos seriam idênticos não fossem os olhos cor de âmbar herdados da mãe. Cada centímetro dos rostos de seus progenitores trazia a mim uma lembrança. Cumprimentei-os com um balançar de cabeça, pois era o máximo que eu podia fazer naquele momento, logo atrás deles dezenas de coroas de flores de um colorido tímido que traziam em suas faixas homenagens de amigos distantes e ler seu nome em cada uma delas estilhaçava meu coração.
As lágrimas caiam de meus olhos sem que eu sentisse e embaçavam os óculos impedindo minha visão. As mãos de Magda me ampararam quando meus joelhos cederam e quase fui ao chão, tudo a nossa volta ficou branco, gelado e girava tão rápido que perdi o equilíbrio por um momento.
Vozes, choros, soluços foi o que ouvi quando comecei a recuperar meus sentidos. Colocaram-me sentada ao lado de seu caixão e por mais de dez minutos olhei para a renda branca que caia de dentro dele e roçava na madeira escura. Não pensava em levantar e tocá-lo, não podia tocá-lo naquela circunstancia, tinha medo de vê-lo, não queira aceitar que toda aquela vontade de viver que transparecia de seus olhos não estava mais presente.
Queria lembrar-me dele como na última vez que nos vimos, pois sorria e cantava tanto que sol ausente parecia nos aquecer naquela tarde chuvosa e fria. Estávamos em seu quarto tocando violão, eu dedilhava alguma bossa nova e ele inventava rimas para minha melodia vulgar. Vestia um casaco branco fino para a estação e zombava por eu estar enrolada em um edredom xadrez de azul e branco, que recendia seu perfume, e ainda assim reclamar do frio.
Estava mergulhada naquelas lembranças e podia, imediatamente, afogar-me nelas e ir embora junto dele. A vida não deveria continuar sem que ele estivesse presente para que realizássemos nossos sonhos. Queríamos filhos ruivos com meus olhos verdes e seus dentes perfeitos, ensinaríamos a eles todas as coisas que aprendemos juntos e um dia poderíamos contar-lhes como éramos felizes em tê-los tido.
Tínhamos tantos planos, nossa vida estava preparada e nós estávamos preparados para enfrentá-la juntos como sempre fazíamos, estaríamos de mãos dadas e cabeça erguida quando as dificuldades surgissem, pretendíamos ser um time, uma equipe que cresceria com o tempo, cresceria em meu ventre. Pretendíamos.
Sua mãe agachou-se em frente a mim, tirou o óculos do meu rosto e limpou minhas lágrimas.
- Por que, Helena? Por que ele? - as palavras rasgavam o nó em minha garganta.
Balançou a cabeça negativamente como se dissesse que não compreendia também, que sofria tanto quanto eu por tê-lo perdido. Então lágrimas se acumularam em seus olhos tristes despencando face a baixo e pingaram em minha calça, seu rosto pousou em meus joelhos e chorou cada vez mais, fazendo com que soluços brotassem de seu peito. Acariciei seus cabelos que eram escuros como os cabelos de seu filho que jazia ao nosso lado.
Se ele estivesse entre nós em um momento como esse teria nos abraçado e dito algo para que ríssemos, tentaria nos confortar a todo custo.
Era sempre tão amoroso conosco, as mulheres de sua vida, tratava-nos com tanto carinho que era impossível não ficar comovida com sua dedicação, olhava-nos quase admiração e fazia com que nos sentíssemos as pessoas mais importantes do mundo. Quando sorria seus pequenos olhos âmbar cintilavam e então era minha vez de olhá-lo com admiração e a pureza do amor que sentia – sinto e nunca deixarei de sentir - transbordava de mim e ali eu poderia permanecer por horas, apenas olhando para ele, procurando alguma parte de seu rosto que eu ainda não conhecesse.
Todo meu corpo doía rejeitando o movimento para levantar-me, não tinha forças era eu contra mim, a razão que me mandava levantar e a emoção que se debatia em meu ser mantendo-me sentada com as mão sobre os cabelos de Helena.
- Levante-se agora, querida. Roberta precisa de um tempo – disse Magda a Helena.
- Quando você estiver pronta pode vê-lo – disse a mim.
- Não quero tia, por favor – supliquei.
- Você precisa ter força para enfrentar – tinha a mesma ternura que ele costumava usar ao falar comigo.
- Minha força está dentro desse caixão.
Encolhi-me na cadeira, as mão ao redor da cintura, a cabeça nos joelhos e chorava tanto que era difícil de respirar, os soluços agora vinham de meu peito que doía de uma forma horrível. Sentia que minha vida havia acabado com a dele.
Minha mão agarrou-se ao caixão e apertava tão forte que meus dedos ficaram roxos, não podia perdê-lo. Por que ele não me acordava daquele pesadelo como já havia feito antes?
Por que não estávamos cantando em seu quarto ou correndo para fugir da chuva? Queria seus braços ao meu redor e sua voz serena dizendo que era só um sonho e que ele ficaria comigo até eu pegar no sono novamente. Queria o vivo para me tirar dali, mas ele não veio não me acordou e nem disse que era apenas um sono.
Levantei com as mãos ainda agarradas ao caixão, olhei para seu rosto, parecia dormir tão profundamente, só que dessa vez eu queria perturbar seu sono, queria que levantasse para que eu dissesse bom dia. Não acordou.
Afaguei rosto e ele não respirou fundo como costumava fazer, não sorriu. Segurei sua mão, mas a sua não apertou a minha nem tentou estralar meus dedos, ele não sorria, oh meu Deus. Passei os dedos por seus lábios e ele não tentou mordê-los.
- Vamos Levi, acorda – segurei seus ombros. – Por favor, acorda, não faz isso comigo. Não faz por tudo que é mais sagrado. Não me deixa, não, NÃÃÃÃO – gritava completamente desesperada.
Ninguém tentou me tirar de perto dele, eu não permitiria, bateria neles se fosse preciso, ninguém o tiraria de mim, nem Deus, nem a morte, nem o Diabo. Eu acabaria com eles, um por um se fosse preciso, mas ninguém o levaria de mim.
Minhas lágrimas tinham molhado seu rosto pálido e algumas pareciam vir dos seus olhos, como eu queria que fosse verdade, queria que ele chorasse comigo. Deitei sobre seu peito chorando sem parar e por um segundo cheguei sentir sua mão em meus cabelos, mas era delírio, suas mãos continuavam cruzadas sobre o peito, próximas ao meu rosto, frias como uma pedra, envolvi-as entre as minhas para aquecê-las, para ressuscitá-lo.
Fiquei muito tempo recurvada sobre ele, quando não havia mais lágrimas cantarolei Someday we’ll know para ele e meu corpo inteiro ainda retorcia-se naquela luta interior, meus músculos estavam rijos.
- Já é o suficiente – disse Helena tentando me tirar do peito de Levi.
- Não – protestei. - Deixe-me ficar, eu preciso.
Não disse nada, só afastou-se de mim e novamente recolheu-se a seu luto.
Permaneci sobre seu peito desejando adormecer ali como tinha feito na primeira vez que dormimos juntos em um quarto de hotel barato no centro da cidade. Tínhamos dezesseis e estávamos tão apaixonados que se o mundo desabasse nem notaríamos, estávamos imersos um no outro ignorando a decadência das paredes mal pintadas, a cama estreita, a antena velha sobre a TV, a mesa bamba e uma janela que dava para os fundos de algum lugar abandonado. Nada disso importava, pois nós tínhamos um ao outro naquele momento e para mim não existia mais nada entre o céu e a terra que não fosse Levi e seu corpo esguio e alto sobre o meu naquela entrega total e recíproca.
- Roberta, você precisa se levantar daí, as pessoas querem se despedir dele – Magda quase ordenava.
- Tudo bem – levantei.
Não o deixaria ali, segurei sua mão e permaneci a seu lado enquanto todos passavam, olhavam-no e davam-me os pêsames, agradecia com um aceno de cabeça, pois me faltavam palavras e sentia que se falasse um ai sequer desabaria em um pranto incontido novamente.
Não lembro quais pessoas passaram por nós enquanto segurava sua mão, elas não me importavam, a pena que elas sentiam não o trariam de volta a vida, suas lágrimas e palavras não abrandariam a dor que crescia cada vez mais em mim. Ninguém no mundo sentiria o mesmo que eu, ninguém sabia tudo sobre nós, pois éramos fechados demais vivíamos no nosso universo onde podíamos ser quem realmente éramos com todos os defeitos que as outras pessoas não aceitavam, mas ele me aceitava e eu o aceitava do jeito que viesse feliz ou triste, louco ou certo demais, mudo ou falante, não importava como eu sempre estaria ali para compartilhar de sua vida.
- Ah, cara! Como isso foi acontecer?! - exclamou alguém na porta.
[ Continua ]
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