- É impressionante te ver fazendo isso - disse ele quase rindo
- Eu sei, até já recebi convite de alguns circos que passaram pela cidade. Balancei a cabeça pelo tamanho da bobagem e logo perguntei: - Você vai para o show de hoje à noite?
- Vou! Quer dizer, não sei ainda, acho que o pessoal não vai e ir sozinho é chato. Você vai?
- Vou e vou sozinha, não acho chato, me divirto mesmo assim - sorri para não parecer tão mórbida.
- Estranha! Você não conta, não entendo como pode se divertir assim, andando sozinha por aí. Falou como se achasse minha vida um absurdo.
- Eu nunca estou sozinha, sempre conheço as pessoas nos lugares aonde eu vou, a questão é que eu não gosto de andar em bandos e mais, estar sozinha não quer dizer que eu esteja solitária, triste e depressiva - dei um soco de leve no braço dele e ri.
- Ok, senhora “I do by myself”, não vou te questionar mais, pois parece que está cheia de coisas para ler - deu uma olhada nos jornais e piscou.
Pisquei para ele também e disse que parecia esperto hoje, ele riu da ironia e bagunçou meu cabelo antes de sair. Quando estava quase na porta virou-se e disse:
- Posso te ligar hoje?
- Pode, você tem meu número!
- Posso te convencer a ir ao show comigo? - arriscou.
- Isso eu acho um pouco mais difícil.
- Não importa, vou tentar - disse como se já tivesse conseguido algo.
- Ninguém nunca morreu por isso - ri do seu jeito convencido.
Ele acenou e saiu todo cheio de si, como se tivesse conseguido um encontro com Audrey Hepburn.
Depois de entregar as reportagens fui para casa, peguei a correspondência e antes de entrar na tenda mágica fumei um cigarro ao lado de minha placa preferida. Larguei a correspondência sobre a mesa, nem queria ver aquilo, contas e mais contas a pagar, não era novidade, nem precisava das correspondências para saber delas, já que se eu não pagasse água, luz, telefone, internet e TV a cabo, ficaria sem eles. Essa era a parte de ruim de não ter permanecido na casa dos meus pais, lá tudo era de graça e eu não precisava me preocupar com as datas de vencimento.
Deixei tudo sobre a mesa mesmo, hoje não pagaria nada, nem me preocuparia com esse tipo de coisa. Tomei um banho demorado para tirar todo aquele grude de suor de mim, depois do banho fui até o supermercado, precisava de algo para comer que não fosse macarrão instantâneo e bolacha salgada. Na volta, dei mais uma parada ao lado do “é proibido fumar”, só para não perder o costume.
O telefone tocou bem na hora que eu estava começando a preparar o jantar, e o que eu senti foi completamente inesperado. Quando li o nome dele no visor do celular senti um frio na barriga e um nervosismo quase adolescente, parecia que era a primeira vez que um cara me ligava para me chamar para sair. Hesitei antes de atender.
- Alô! - disse, engolindo o nervosismo patético.
- Oi, já está pronta? - perguntou.
-Hm... Não! - falei quase confusa. Achei que ele seria mais sutil ao menos.
- Pensei ter te ouvido dizer que iria ao show.
- Sim, eu disse, mas é cedo ainda - tentei não ser rude como eu costumava ser ao telefone.
- Quer ir a algum lugar antes do show? Nós poderíamos jantar - arriscou demais.
- Olha, desculpa Mathias, eu estou acabando de preparar o jantar aqui, vou ter que dispensar o convite - falei isso e quase me arrependi meio segundo depois.
- Mas te buscar mais tarde eu posso, não posso? - agora havia insegurança na sua voz.
- Se sua direção for tão ruim quanto suas táticas de sedução, eu prefiro ir com meu carro.
- Ah, sua miserável! - disse com uma falsa indignação e gargalhou.
Ri tanto que minha barriga doeu.
Mathias era engraçado e eu sempre entendia antes mesmo do final, as piadas que ele pretendia fazer, nós nos dávamos bem. Ele era um exatóide culto que dividia comigo o apreço por inverno, cigarros e fotografia. Não sei há quanto tempo ele trabalhava na agência dando suporte aos computadores, quando comecei a trabalhar ele já estava lá. Era bonito, mas não de uma beleza convencional, era alto, 1.90m talvez - eu me sentia uma formiga com meus 1.60m quando andava ao seu lado - cabelo bagunçado, estilo rock inglês, tinha olhos quase pretos como os meus, vestia-se bem e acima de tudo era original, não se parecia com as pessoas ao redor, se destacava por algum motivo. Eu já tinha percebido que algumas mulheres lá da agência davam em cima dele, mas ele sempre pareceu tímido para essas coisas, nunca o vi saindo de lá com alguém ou conversando mais intimamente com alguma delas, apesar de agir como conquistador - a caricatura de um conquistador melhor dizendo - quando estava perto de mim, não deve ter se envolvido com alguém de lá.
Acabei o jantar, joguei a louça suja na pia e corri me arrumar para esperá-lo. Tirei tudo de dentro do guarda-roupa, fiquei mais de quinze minutos puxando roupas pra fora, olhando no espelho, não fazia isso muitas vezes, ter um encontro é estranho para mim, normalmente eu conheço as pessoas durante a noite e só dura uma noite, nada mais que isso. Hoje era diferente, eu estava nervosa em saber que logo ele estaria na frente do meu prédio, já o conhecia não poderia ficar menos que muito bem pra vê-lo, eu queria que seu rosto se contorcesse em um “uaaal” engolido.
Desisti das calças e blusas, o verão era horrível, a necessidade de vestir pouca roupa me constrangia, mas mesmo assim optei por usar um vestido, mas qual? Havia cinco deles sobre minha cama, dois pretos, um vermelho, um azul e um verde, foi aí que eu lembrei:“magnificamente bonita de verde”. Uma vez na vida Ricardo me pareceu útil, coloquei o vestido rodado verde escuro que realmente combinava com meus cabelos quase ruivos e minha pele branca - braaannca mesmo!
Concluída a etapa do vestido faltavam os sapatos, mais uma missa a ser rezada até eu achar alguma coisa que me agradasse, abri a sapateira e provei todos, um certamente teria que me agradar, aquilo me irritava muito, ficar horas preocupada com o que vestir, eu sempre sabia o que era apropriado ou não. E lá no fundo, perto de onde minha esperança de achar um calçado ia terminar, encontrei um sapato preto de salto alto - eu não poderia parecer uma anã perto dele - e bico redondo, o que dava um ar retro à roupa toda.
Eu estava pronta, devidamente maquiada, só conferia se havia colocado todas as coisas que precisava dentro da bolsa quando o interfone tocou, eu sabia que era ele e mais uma vez meu estomago enlouqueceu, sai correndo, tropeçando em tudo, quase cai quando meu salto enroscou no tapete da sala.
- Tapete do inferno - gritei antes de atender o interfone.
- Oi! - disse quase ofegante.
- Mademoiselle, a carruagem já está a sua espera - parecia um Lord inglês e eu ri involuntariamente.
- Ah, ótimo, monsiuer. Estou a caminho!
Devo ter feito um milhão de caretas antes de sair de casa, estava ansiosa demais. Quando encaixei a chave para abrir a porta principal que dava para a rua, respirei fundo e pensei: puta merda, agora tenho que sair... E eu saí.
Ele estava de costas para o prédio, encostado nas grades e como sempre bem vestido, usava uma calça jeans escura, all star branco e um paletó em cima da blusa. Quando ouviu o barulho do meu salto sobre a calçada virou-se, arregalou os olhos e não fez o que eu esperava seu rosto não se contorceu em um “ual”, ficou parado com a boca entreaberta.
- Se estiver tão ruim assim eu posso voltar e trocar de roupa - não sabia se ele estava achando bom ou ruim.
- Não! Não, não seja louca, você está ótima - sorriu e me olhou novamente da cabeça aos pés.
- Mathias! - chamei enquanto abria o portão.
- Ahn?
- Você está me constrangendo - não tinha como não rir daquela situação.
- Desculpa - riu de si mesmo. – Você deveria ir ao trabalho assim.
- Absolutamente, um vestido longo é bem mais apropriado para trabalhar - eu ria de nervosismo era difícil relaxar, precisava beber algo.
- Sucessão você trabalhando de vestido longo - disse isso já abrindo a porta do carro. – Vamos?!
- Claro! - assenti.
Ele deu a volta no carro e quando ficou de frente para abrir a porta vi a blusa branca sob o paletó e ao entrar no carro perguntei:
- Não vai sentir calor?
- Provavelmente, mas a blusa debaixo é uma regata - piscou, sempre piscava, acho que ele era o tic nervoso dele.
- Ah, sim. Seus amigos vão também? - perguntei esperando uma negativa, não queria uma multidão atrás da gente.
- Disseram que não iriam, mas se forem nós fugiremos deles - riu.
- Não tenho problemas com pessoas.
- Claro que não tem.
- Sente só... - fiquei séria.
- O que? - ficou sério de repente.
- O cheiro de deboche - continuei séria.
Ele pensou meio segundo antes de começar a rir e riu tanto que vi nele todo o nervosismo que eu sentia quando ainda estava em casa. Conversamos até chegar ao lugar do show, não era muito longe da minha casa, a ansiedade começava a se dissipar, já conseguíamos agir naturalmente. Deixamos o carro em uma rua secundária e fomos comprar nossos ingressos, quando chegamos à portaria seis dos milhares de amigos de Mathias estavam lá, três casais e duvido muito que aquilo não tenha sido armado: “Vamos lá, Mathias, e leva tua garota!”. Só eu sei como fiquei sem jeito ao cumprimentar todos eles, conversaram um pouco sobre a banda, perguntaram sobre mim, sobre minha vida e não exista coisa que eu pudesse abominar mais do que falar aos outros sobre minha vida, eu não era um livro aberto, falei o mínimo possível, então o show começou e eu pude me livrar deles e de Mathias também, fui para frente do palco e fiquei lá com meu cigarro, uma cerveja e meu humor detestável.
Não lembro o que a banda cantava, fiquei mais de quinze minutos imersa em pensamentos, imaginando como Mathias me deixaria exposta àquela vida social chata, não era o que eu queria. Alguém vindo do lado direito chocou-se comigo, olhei assustada, estava tão distraída ali, era uma garota bêbada demais para equilibrar-se em seus tênis, abaixei-me para ajudá-la a levantar, estendi a mão e perguntei:
- Precisa de ajuda para sair daqui? - quase gritei para que ela pudesse ouvir-me em meio a todo aquele barulho.
- Não, não, eu consigo - as palavras estavam enroladas demais.
Quando a soltei um cara alto e muito louro a segurou, falou algo em seu ouvido, agradeceu-me e a carregou para fora. Acompanhei-os com os olhos até a saída, ela parecia flutuar e ele a carregava com tanto carinho que cheguei invejá-la por alguns minutos, eles saíram pela porta lateral e eu olhei ao redor não para encontrar alguém conhecido, só olhei. Meus olhos pararam no bar, sob aquela criatura encostada de forma despreocupada que me observava, sorri para Mathias, ele não tinha culpa por eu querer ser sozinha, sustentei o olhar dele por alguns minutos até ele abandonar o balcão do bar e caminhar até mim com o paletó na mão, deixando seus braços brancos quase musculosos à mostra.
Chegou até mim, pôs a mão em minha nuca, puxou-me para perto, minhas bochechas pegaram fogo e baixei a cabeça, parecia que nunca tinha vivido algo semelhante antes, com a outra mão ele ergueu meu rosto, para que eu olhasse para ele e no momento em que pensei em falar qualquer coisa para desencorajá-lo, inclinou o corpo e juntou seus lábios aos meus. Tudo e todos sumiram, meus pés quase saíram do chão quando ele puxou-me mais para perto do seu corpo, não sei quanto tempo o beijo durou, só lembro-me da sensação de não ter controle sobre as coisas e sentir segurança mesmo assim. Suas mãos prenderam minha cintura enquanto eu me afastava e ele beijou-me mais uma vez, então me afastei dele, mas meus olhos não se desprendiam dos seus.
- Por quê? - perguntei confusa.
Ele não tinha motivos para isso, eu fugi dele, deixei-o com os amigos que esperavam pela “garota do Mathias”, cheguei a pensar que ele estaria furioso ou algo do tipo, que não falaria comigo.
- Você se esforça tanto para ser desprezível, mas não consegue. Eu vi como você tratou aquela garota e pessoas ruins não agem dessa forma, você não é assim como diz, tem um buraco muito grande entre o que você é e o que diz ser e eu não acredito no que você diz.
Aquilo me irritou tanto que eu poderia bater nele se eu fosse maior, meus músculos ficaram tensos e eu queria gritar com ele dizer que ele não sabia nada sobre a minha vida, não tinha direito de falar esse tipo de coisa, ele não me conhecia, quem ele pensava que era meu psicólogo, meu psiquiatra?! Não ele não era nada disso e então era melhor calar a boca e terminar tudo agora antes de começar de verdade ou as coisas se complicariam mais.
- Bom, se eu sou uma mentira você pode ir embora - disse.
[Continua...]
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
É proibido fumar - Parte 1
- É a perfeita encenação da morte - disse Ricardo caminhando até mim. Ele sempre chegava desta forma, sem avisar ou dizer oi, tudo para ele era uma parte perdida de uma peça de teatro.
- A que devo a honra? - perguntei em um misto de surpresa e sarcasmo.
Rio de mim como costumava fazer quando notava que eu estava nervosa com sua presença, frequentemente eu perdia o controle e entravamos em alguma discussão banal.
- Estava passando, tenho coisas pra fazer no outro lado da cidade, e não pude deixar de notar você aqui, mergulhada na fumaça desse cigarro interminável.
Bati as cinzas que foram ao chão, não tinha respostas para ele, sempre me surgia alguma pergunta algo que eu queria saber, mas ele nunca permitia, sempre sumia antes, rindo, sempre rindo, como se o mundo girasse em torno de toda aquela alegria desapropriada.
- Saí mais cedo hoje, não queria voltar para casa e arrumar tudo aquilo. O que você vai fazer naquele lado da cidade? - perguntei. Minhas frases eram sempre tão desconexas que às vezes me questionava se ele entendia tudo aquilo ou só fingia entender.
- Vou entregar uns flyers dos shows do mês que vem - falou.
- Que bom que vocês estão ganhando espaço - cheguei a sorrir ao dizer isso, mas logo o sorriso morreu e eu quis fugir dele.
- É. Talvez você queir...
- Tenho que ir agora, a gente se cruza - interrompi sua proposta despejando tudo de uma vez, juntei minhas coisas que estavam sobre a mesa, vesti meu casaco, pois o vento ainda era frio e sai voando pelas ruas.
Não olhei pra trás, não sei se ele olhou pra mim, não faz diferença. Às vezes eu me pergunto de onde surgiu tudo isso, de onde ele surgiu, porque nós fugimos, porque eu tenho medo e finalmente, aonde tudo isso vai dar.
Fumei mais um cigarro sentada na escadaria do meu prédio, ao lado da placa de “proibido fumar”, ninguém me prenderia por isso, e se prendesse eu não tinha muito a perder no momento.
Moro sozinha, saí de casa com 18, queria me libertar, viver em outros mundos, descobrir as várias realidades existentes, mas acabei sozinha em um apartamento que parece uma gaiola, com paredes cheias de recortes de jornal e fedendo a nicotina. Maldito vício, nem sei quando começou, deve ter sido em algum inverno, pois eu acho pavoroso fumar em dias quentes, o que não vem ao caso no momento. Estou no meio da faculdade de publicidade, mas não sou nenhuma revelação da propaganda, nem um gênio da criação. Tenho uma promessa de emprego, isso obviamente, se eu tiver capacidade, se for boa o bastante. Ultimamente gosto de dizer que eu sobrevivo. Não me esforço muito, simplesmente levanto da cama e faço o que tem de ser feito, sem lamentações ou choros, essa foi a vida que eu escolhi.
Depois da reflexão do dia, subi os vinte degraus e cheguei ao meu apartamento encantado. Joguei minhas coisas em um canto, liguei a TV, só pra ter algum movimento dentro de casa, deitei no sofá e fiquei ali tentando adivinhar de onde Ricardo tinha emergido como faço todas as vezes que ele resolve cruzar meu caminho. Não existem explicações lógicas para nada do que ele faz, é um mistério gigantesco que perturba minha mente todas as vezes que procuro respostas.
Fiquei quase uma hora pensando antes de a exaustão bater e eu pegar no sono. Acordei meio perdida, já estava escuro lá fora, a lua era minguante, aliás, adoro a lua, ela me conforta, faz com que eu esqueça as coisas ruins, depois de saudá-la com o “ oi, bonita” de costume fui até a cozinha procurar algo pra comer, mas só achei macarrão instantâneo que o meu organismo tem rejeitado nos últimos tempos. Voltei para a sala procurar meu celular para pedir alguma coisa que matasse a minha fome, quando o encontrei a tela piscava indicando mensagem de texto , cliquei em “ver” e fiquei no mínimo surpresa com a ousadia daquele miserável:
“Você fica magnificamente bonita dentro do seu casaco verde.
R.”
Isso complica as coisas, ele sempre complica as coisas e some. Se metade da minha agonia fosse transferida pra ele eu ficaria feliz e riria da cara daquele imbecil. Não há possibilidade de ele ser normal, que tipo de pessoa age dessa forma?!
A confusão que ele causa em mim não dura muito, eu só preciso dormir e esquecer as coisas que ele faz, aí então, ele vira só mais um conhecido e nós próximos dias, meses ou até anos - sim, o conheço há anos - eu o esqueço completamente, levo a vida normalmente. Eu não o amo, não sou apaixonada por ele, é só um tipo de obsessão que não tem sentido, não quero que ele me abrace, me beije ou ande de mãos dadas comigo por aí, nada disso, eu quero que ele seja um objeto inanimado desses que você olha e compreende e não essa bosta toda que ele é, esse ser inexplicável. Queria poder arrancar os olhos dele também, pois nunca na minha vida os olhos de uma pessoa tiveram o mesmo impacto sobre mim, é como se toda a energia vital fosse sugada e eu me sinto mal quando fico mais de cinco minutos perto dele, é quase insuportável sentir minhas forças se esvaindo por causa de uma pessoa que não significa nada.
Após a mensagem de texto não nos vimos por meses, eu acho, e nem senti falta, era como se ele não existisse, a vida seguiu, trabalhei feito cachorro durante os últimos dias do ano - faço estágio em uma agência de publicidade - para ter direito a férias em janeiro, passei natal e ano novo com minha família, só para não parecer que eu era uma alienada que não ligava pra coisa alguma e francamente essas festas de final de ano não têm significado pra mim, mas como têm para as outras pessoas não entremos em conflitos, festejemos, enchamos a cara e sejamos felizes.
Minhas férias foram ótimas, viajei sozinha como eu gosto, visitei alguns amigos, conheci pessoas e coisas novas, o mundo lá fora é fascinante, todas as pessoas deveriam ser livres, livres mesmo, sem precisar dar explicações, poder fazer o que querem na hora que desejarem. Passei vinte dias fora, os últimos dez dias foram de faxina em casa e acredite, eu precisava mesmo de dez dias, arrumei tudo, não mexia em nada pra não desarrumar e ter que recomeçar. Ficou tudo lindo, sem cheiro de cigarro - agora eu só fumava ao lado do “é proibido fumar” da escadaria-, sem lixo no chão, sem livros por toda parte e puft, acabaram-se as férias.
Voltei à agência, minha mesa estava entulhada novamente, as pessoas estavam super animadas como costumavam ser, eu simpaticíssima, que os deuses perdoem a ironia, contando sobre minhas férias e a diversão nas festas de final de ano, tudo absolutamente normal, porém as coisas não podem ficar muito bem por muito tempo, especialmente para mim.
Dia desses, eu estava pesquisando alguns fatos políticos para uma propaganda, já tinha vasculhado os livros e algumas revistas, só faltava olhar alguns jornais do tempo de Getúlio, quando o encontrei, ele e aqueles olhos verdes fulminantes e sugadores, estava no corredor estreito dos jornais antigos. Ele tentou acabar comigo, parou na minha frente, não se moveu um centímetro, não falou uma palavra, só me olhou nos olhos, ou melhor, na alma, no pulmão, no coração, no estômago, todo e qualquer lugar de mim, alguns que até eu mesma não conhecia. Não fiz menção de falar uma palavra sequer, nem de respirar, eu acho, meu rosto era uma máscara sem emoções, movi a sobrancelha direita em arco, quase o desprezando.
- Oi, pequena - disse com sarcasmo.
- Oi, gigante - respondi com desdém.
Então seus dentes apareceram em sorriso debochado, como se tivesse ganhado, conseguido me irritar com duas palavras. Balancei a cabeça como quem desaprova algo.
- Você desapareceu, achei que tivesse ido embora da cidade - afirmou
- Já ouviu falar em férias, sir? - ri por dentro
- Ah, sim, claro que sim. Pareceu aturdido, como se não esperasse aquela respostar. - É que na minha tribo não existem coisas desse tipo - riu alto.
- Pitcha pitcha kiriri. Tenho coisas para fazer agora, hau - passei por ele rindo e ri por mais alguns minutos enquanto procurava os jornais.
Essa, com certeza, foi a primeira vez que o mal que ele me fazia foi menor que o bem, não me senti fraca, nem tive vontade de fugir aos berros, acho que estava superando as coisas que sentia por ele, aquela aversão seguida pela atração. O meu dia não se alterou por sua causa, fiz tudo normalmente, sem o peso que ele costumava deixar comigo, fiquei triunfante, tinha superado, como era possível, aquela perturbação havia durado tanto tempo e agora parecia que ele não tinha mais nenhuma força pra exercer sobre mim. Ah, como eu estava feliz, tinha vontade de rir na cara dele, olhar nos olhos dele e não sentir nada, mas eu resolvi não brincar com o perigo, peguei a pilha de jornais que havia selecionado e levei até minha mesa.
Eram 15 horas, eu precisava entregar as reportagens até as 18h30min, debrucei-me sobre a mesa e comecei lê-las com a maior atenção para não deixar escapar nenhum detalhe. Eu estava empolgada, as coisas iam bem hoje, nada tinha dado errado. Enquanto lia as reportagens enrolava, frenética e incansavelmente os cabelos por entre os dedos, no momento em que me dei conta da velocidade com que o fazia, notei alguém se aproximando, mas não me virei, só acompanhei os passos e percebi que vinham em minha direção.
- Você vai ficar careca se continuar fazendo isso. Reconheci a voz de imediato.
- Muito engraçado, Mathias - ri enquanto soltava o cabelo dos dedos.
[Continua...]
- A que devo a honra? - perguntei em um misto de surpresa e sarcasmo.
Rio de mim como costumava fazer quando notava que eu estava nervosa com sua presença, frequentemente eu perdia o controle e entravamos em alguma discussão banal.
- Estava passando, tenho coisas pra fazer no outro lado da cidade, e não pude deixar de notar você aqui, mergulhada na fumaça desse cigarro interminável.
Bati as cinzas que foram ao chão, não tinha respostas para ele, sempre me surgia alguma pergunta algo que eu queria saber, mas ele nunca permitia, sempre sumia antes, rindo, sempre rindo, como se o mundo girasse em torno de toda aquela alegria desapropriada.
- Saí mais cedo hoje, não queria voltar para casa e arrumar tudo aquilo. O que você vai fazer naquele lado da cidade? - perguntei. Minhas frases eram sempre tão desconexas que às vezes me questionava se ele entendia tudo aquilo ou só fingia entender.
- Vou entregar uns flyers dos shows do mês que vem - falou.
- Que bom que vocês estão ganhando espaço - cheguei a sorrir ao dizer isso, mas logo o sorriso morreu e eu quis fugir dele.
- É. Talvez você queir...
- Tenho que ir agora, a gente se cruza - interrompi sua proposta despejando tudo de uma vez, juntei minhas coisas que estavam sobre a mesa, vesti meu casaco, pois o vento ainda era frio e sai voando pelas ruas.
Não olhei pra trás, não sei se ele olhou pra mim, não faz diferença. Às vezes eu me pergunto de onde surgiu tudo isso, de onde ele surgiu, porque nós fugimos, porque eu tenho medo e finalmente, aonde tudo isso vai dar.
Fumei mais um cigarro sentada na escadaria do meu prédio, ao lado da placa de “proibido fumar”, ninguém me prenderia por isso, e se prendesse eu não tinha muito a perder no momento.
Moro sozinha, saí de casa com 18, queria me libertar, viver em outros mundos, descobrir as várias realidades existentes, mas acabei sozinha em um apartamento que parece uma gaiola, com paredes cheias de recortes de jornal e fedendo a nicotina. Maldito vício, nem sei quando começou, deve ter sido em algum inverno, pois eu acho pavoroso fumar em dias quentes, o que não vem ao caso no momento. Estou no meio da faculdade de publicidade, mas não sou nenhuma revelação da propaganda, nem um gênio da criação. Tenho uma promessa de emprego, isso obviamente, se eu tiver capacidade, se for boa o bastante. Ultimamente gosto de dizer que eu sobrevivo. Não me esforço muito, simplesmente levanto da cama e faço o que tem de ser feito, sem lamentações ou choros, essa foi a vida que eu escolhi.
Depois da reflexão do dia, subi os vinte degraus e cheguei ao meu apartamento encantado. Joguei minhas coisas em um canto, liguei a TV, só pra ter algum movimento dentro de casa, deitei no sofá e fiquei ali tentando adivinhar de onde Ricardo tinha emergido como faço todas as vezes que ele resolve cruzar meu caminho. Não existem explicações lógicas para nada do que ele faz, é um mistério gigantesco que perturba minha mente todas as vezes que procuro respostas.
Fiquei quase uma hora pensando antes de a exaustão bater e eu pegar no sono. Acordei meio perdida, já estava escuro lá fora, a lua era minguante, aliás, adoro a lua, ela me conforta, faz com que eu esqueça as coisas ruins, depois de saudá-la com o “ oi, bonita” de costume fui até a cozinha procurar algo pra comer, mas só achei macarrão instantâneo que o meu organismo tem rejeitado nos últimos tempos. Voltei para a sala procurar meu celular para pedir alguma coisa que matasse a minha fome, quando o encontrei a tela piscava indicando mensagem de texto , cliquei em “ver” e fiquei no mínimo surpresa com a ousadia daquele miserável:
“Você fica magnificamente bonita dentro do seu casaco verde.
R.”
Isso complica as coisas, ele sempre complica as coisas e some. Se metade da minha agonia fosse transferida pra ele eu ficaria feliz e riria da cara daquele imbecil. Não há possibilidade de ele ser normal, que tipo de pessoa age dessa forma?!
A confusão que ele causa em mim não dura muito, eu só preciso dormir e esquecer as coisas que ele faz, aí então, ele vira só mais um conhecido e nós próximos dias, meses ou até anos - sim, o conheço há anos - eu o esqueço completamente, levo a vida normalmente. Eu não o amo, não sou apaixonada por ele, é só um tipo de obsessão que não tem sentido, não quero que ele me abrace, me beije ou ande de mãos dadas comigo por aí, nada disso, eu quero que ele seja um objeto inanimado desses que você olha e compreende e não essa bosta toda que ele é, esse ser inexplicável. Queria poder arrancar os olhos dele também, pois nunca na minha vida os olhos de uma pessoa tiveram o mesmo impacto sobre mim, é como se toda a energia vital fosse sugada e eu me sinto mal quando fico mais de cinco minutos perto dele, é quase insuportável sentir minhas forças se esvaindo por causa de uma pessoa que não significa nada.
Após a mensagem de texto não nos vimos por meses, eu acho, e nem senti falta, era como se ele não existisse, a vida seguiu, trabalhei feito cachorro durante os últimos dias do ano - faço estágio em uma agência de publicidade - para ter direito a férias em janeiro, passei natal e ano novo com minha família, só para não parecer que eu era uma alienada que não ligava pra coisa alguma e francamente essas festas de final de ano não têm significado pra mim, mas como têm para as outras pessoas não entremos em conflitos, festejemos, enchamos a cara e sejamos felizes.
Minhas férias foram ótimas, viajei sozinha como eu gosto, visitei alguns amigos, conheci pessoas e coisas novas, o mundo lá fora é fascinante, todas as pessoas deveriam ser livres, livres mesmo, sem precisar dar explicações, poder fazer o que querem na hora que desejarem. Passei vinte dias fora, os últimos dez dias foram de faxina em casa e acredite, eu precisava mesmo de dez dias, arrumei tudo, não mexia em nada pra não desarrumar e ter que recomeçar. Ficou tudo lindo, sem cheiro de cigarro - agora eu só fumava ao lado do “é proibido fumar” da escadaria-, sem lixo no chão, sem livros por toda parte e puft, acabaram-se as férias.
Voltei à agência, minha mesa estava entulhada novamente, as pessoas estavam super animadas como costumavam ser, eu simpaticíssima, que os deuses perdoem a ironia, contando sobre minhas férias e a diversão nas festas de final de ano, tudo absolutamente normal, porém as coisas não podem ficar muito bem por muito tempo, especialmente para mim.
Dia desses, eu estava pesquisando alguns fatos políticos para uma propaganda, já tinha vasculhado os livros e algumas revistas, só faltava olhar alguns jornais do tempo de Getúlio, quando o encontrei, ele e aqueles olhos verdes fulminantes e sugadores, estava no corredor estreito dos jornais antigos. Ele tentou acabar comigo, parou na minha frente, não se moveu um centímetro, não falou uma palavra, só me olhou nos olhos, ou melhor, na alma, no pulmão, no coração, no estômago, todo e qualquer lugar de mim, alguns que até eu mesma não conhecia. Não fiz menção de falar uma palavra sequer, nem de respirar, eu acho, meu rosto era uma máscara sem emoções, movi a sobrancelha direita em arco, quase o desprezando.
- Oi, pequena - disse com sarcasmo.
- Oi, gigante - respondi com desdém.
Então seus dentes apareceram em sorriso debochado, como se tivesse ganhado, conseguido me irritar com duas palavras. Balancei a cabeça como quem desaprova algo.
- Você desapareceu, achei que tivesse ido embora da cidade - afirmou
- Já ouviu falar em férias, sir? - ri por dentro
- Ah, sim, claro que sim. Pareceu aturdido, como se não esperasse aquela respostar. - É que na minha tribo não existem coisas desse tipo - riu alto.
- Pitcha pitcha kiriri. Tenho coisas para fazer agora, hau - passei por ele rindo e ri por mais alguns minutos enquanto procurava os jornais.
Essa, com certeza, foi a primeira vez que o mal que ele me fazia foi menor que o bem, não me senti fraca, nem tive vontade de fugir aos berros, acho que estava superando as coisas que sentia por ele, aquela aversão seguida pela atração. O meu dia não se alterou por sua causa, fiz tudo normalmente, sem o peso que ele costumava deixar comigo, fiquei triunfante, tinha superado, como era possível, aquela perturbação havia durado tanto tempo e agora parecia que ele não tinha mais nenhuma força pra exercer sobre mim. Ah, como eu estava feliz, tinha vontade de rir na cara dele, olhar nos olhos dele e não sentir nada, mas eu resolvi não brincar com o perigo, peguei a pilha de jornais que havia selecionado e levei até minha mesa.
Eram 15 horas, eu precisava entregar as reportagens até as 18h30min, debrucei-me sobre a mesa e comecei lê-las com a maior atenção para não deixar escapar nenhum detalhe. Eu estava empolgada, as coisas iam bem hoje, nada tinha dado errado. Enquanto lia as reportagens enrolava, frenética e incansavelmente os cabelos por entre os dedos, no momento em que me dei conta da velocidade com que o fazia, notei alguém se aproximando, mas não me virei, só acompanhei os passos e percebi que vinham em minha direção.
- Você vai ficar careca se continuar fazendo isso. Reconheci a voz de imediato.
- Muito engraçado, Mathias - ri enquanto soltava o cabelo dos dedos.
[Continua...]
sábado, 16 de janeiro de 2010
Respeitável público...
Trago-lhes alguns textículos
Que acabei de preparar
os meus, mexidos!
Que acabei de preparar
os meus, mexidos!
'Chacal'
- Toda segunda-feira serão postados novos capítulos.
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