- É a perfeita encenação da morte - disse Ricardo caminhando até mim. Ele sempre chegava desta forma, sem avisar ou dizer oi, tudo para ele era uma parte perdida de uma peça de teatro.
- A que devo a honra? - perguntei em um misto de surpresa e sarcasmo.
Rio de mim como costumava fazer quando notava que eu estava nervosa com sua presença, frequentemente eu perdia o controle e entravamos em alguma discussão banal.
- Estava passando, tenho coisas pra fazer no outro lado da cidade, e não pude deixar de notar você aqui, mergulhada na fumaça desse cigarro interminável.
Bati as cinzas que foram ao chão, não tinha respostas para ele, sempre me surgia alguma pergunta algo que eu queria saber, mas ele nunca permitia, sempre sumia antes, rindo, sempre rindo, como se o mundo girasse em torno de toda aquela alegria desapropriada.
- Saí mais cedo hoje, não queria voltar para casa e arrumar tudo aquilo. O que você vai fazer naquele lado da cidade? - perguntei. Minhas frases eram sempre tão desconexas que às vezes me questionava se ele entendia tudo aquilo ou só fingia entender.
- Vou entregar uns flyers dos shows do mês que vem - falou.
- Que bom que vocês estão ganhando espaço - cheguei a sorrir ao dizer isso, mas logo o sorriso morreu e eu quis fugir dele.
- É. Talvez você queir...
- Tenho que ir agora, a gente se cruza - interrompi sua proposta despejando tudo de uma vez, juntei minhas coisas que estavam sobre a mesa, vesti meu casaco, pois o vento ainda era frio e sai voando pelas ruas.
Não olhei pra trás, não sei se ele olhou pra mim, não faz diferença. Às vezes eu me pergunto de onde surgiu tudo isso, de onde ele surgiu, porque nós fugimos, porque eu tenho medo e finalmente, aonde tudo isso vai dar.
Fumei mais um cigarro sentada na escadaria do meu prédio, ao lado da placa de “proibido fumar”, ninguém me prenderia por isso, e se prendesse eu não tinha muito a perder no momento.
Moro sozinha, saí de casa com 18, queria me libertar, viver em outros mundos, descobrir as várias realidades existentes, mas acabei sozinha em um apartamento que parece uma gaiola, com paredes cheias de recortes de jornal e fedendo a nicotina. Maldito vício, nem sei quando começou, deve ter sido em algum inverno, pois eu acho pavoroso fumar em dias quentes, o que não vem ao caso no momento. Estou no meio da faculdade de publicidade, mas não sou nenhuma revelação da propaganda, nem um gênio da criação. Tenho uma promessa de emprego, isso obviamente, se eu tiver capacidade, se for boa o bastante. Ultimamente gosto de dizer que eu sobrevivo. Não me esforço muito, simplesmente levanto da cama e faço o que tem de ser feito, sem lamentações ou choros, essa foi a vida que eu escolhi.
Depois da reflexão do dia, subi os vinte degraus e cheguei ao meu apartamento encantado. Joguei minhas coisas em um canto, liguei a TV, só pra ter algum movimento dentro de casa, deitei no sofá e fiquei ali tentando adivinhar de onde Ricardo tinha emergido como faço todas as vezes que ele resolve cruzar meu caminho. Não existem explicações lógicas para nada do que ele faz, é um mistério gigantesco que perturba minha mente todas as vezes que procuro respostas.
Fiquei quase uma hora pensando antes de a exaustão bater e eu pegar no sono. Acordei meio perdida, já estava escuro lá fora, a lua era minguante, aliás, adoro a lua, ela me conforta, faz com que eu esqueça as coisas ruins, depois de saudá-la com o “ oi, bonita” de costume fui até a cozinha procurar algo pra comer, mas só achei macarrão instantâneo que o meu organismo tem rejeitado nos últimos tempos. Voltei para a sala procurar meu celular para pedir alguma coisa que matasse a minha fome, quando o encontrei a tela piscava indicando mensagem de texto , cliquei em “ver” e fiquei no mínimo surpresa com a ousadia daquele miserável:
“Você fica magnificamente bonita dentro do seu casaco verde.
R.”
Isso complica as coisas, ele sempre complica as coisas e some. Se metade da minha agonia fosse transferida pra ele eu ficaria feliz e riria da cara daquele imbecil. Não há possibilidade de ele ser normal, que tipo de pessoa age dessa forma?!
A confusão que ele causa em mim não dura muito, eu só preciso dormir e esquecer as coisas que ele faz, aí então, ele vira só mais um conhecido e nós próximos dias, meses ou até anos - sim, o conheço há anos - eu o esqueço completamente, levo a vida normalmente. Eu não o amo, não sou apaixonada por ele, é só um tipo de obsessão que não tem sentido, não quero que ele me abrace, me beije ou ande de mãos dadas comigo por aí, nada disso, eu quero que ele seja um objeto inanimado desses que você olha e compreende e não essa bosta toda que ele é, esse ser inexplicável. Queria poder arrancar os olhos dele também, pois nunca na minha vida os olhos de uma pessoa tiveram o mesmo impacto sobre mim, é como se toda a energia vital fosse sugada e eu me sinto mal quando fico mais de cinco minutos perto dele, é quase insuportável sentir minhas forças se esvaindo por causa de uma pessoa que não significa nada.
Após a mensagem de texto não nos vimos por meses, eu acho, e nem senti falta, era como se ele não existisse, a vida seguiu, trabalhei feito cachorro durante os últimos dias do ano - faço estágio em uma agência de publicidade - para ter direito a férias em janeiro, passei natal e ano novo com minha família, só para não parecer que eu era uma alienada que não ligava pra coisa alguma e francamente essas festas de final de ano não têm significado pra mim, mas como têm para as outras pessoas não entremos em conflitos, festejemos, enchamos a cara e sejamos felizes.
Minhas férias foram ótimas, viajei sozinha como eu gosto, visitei alguns amigos, conheci pessoas e coisas novas, o mundo lá fora é fascinante, todas as pessoas deveriam ser livres, livres mesmo, sem precisar dar explicações, poder fazer o que querem na hora que desejarem. Passei vinte dias fora, os últimos dez dias foram de faxina em casa e acredite, eu precisava mesmo de dez dias, arrumei tudo, não mexia em nada pra não desarrumar e ter que recomeçar. Ficou tudo lindo, sem cheiro de cigarro - agora eu só fumava ao lado do “é proibido fumar” da escadaria-, sem lixo no chão, sem livros por toda parte e puft, acabaram-se as férias.
Voltei à agência, minha mesa estava entulhada novamente, as pessoas estavam super animadas como costumavam ser, eu simpaticíssima, que os deuses perdoem a ironia, contando sobre minhas férias e a diversão nas festas de final de ano, tudo absolutamente normal, porém as coisas não podem ficar muito bem por muito tempo, especialmente para mim.
Dia desses, eu estava pesquisando alguns fatos políticos para uma propaganda, já tinha vasculhado os livros e algumas revistas, só faltava olhar alguns jornais do tempo de Getúlio, quando o encontrei, ele e aqueles olhos verdes fulminantes e sugadores, estava no corredor estreito dos jornais antigos. Ele tentou acabar comigo, parou na minha frente, não se moveu um centímetro, não falou uma palavra, só me olhou nos olhos, ou melhor, na alma, no pulmão, no coração, no estômago, todo e qualquer lugar de mim, alguns que até eu mesma não conhecia. Não fiz menção de falar uma palavra sequer, nem de respirar, eu acho, meu rosto era uma máscara sem emoções, movi a sobrancelha direita em arco, quase o desprezando.
- Oi, pequena - disse com sarcasmo.
- Oi, gigante - respondi com desdém.
Então seus dentes apareceram em sorriso debochado, como se tivesse ganhado, conseguido me irritar com duas palavras. Balancei a cabeça como quem desaprova algo.
- Você desapareceu, achei que tivesse ido embora da cidade - afirmou
- Já ouviu falar em férias, sir? - ri por dentro
- Ah, sim, claro que sim. Pareceu aturdido, como se não esperasse aquela respostar. - É que na minha tribo não existem coisas desse tipo - riu alto.
- Pitcha pitcha kiriri. Tenho coisas para fazer agora, hau - passei por ele rindo e ri por mais alguns minutos enquanto procurava os jornais.
Essa, com certeza, foi a primeira vez que o mal que ele me fazia foi menor que o bem, não me senti fraca, nem tive vontade de fugir aos berros, acho que estava superando as coisas que sentia por ele, aquela aversão seguida pela atração. O meu dia não se alterou por sua causa, fiz tudo normalmente, sem o peso que ele costumava deixar comigo, fiquei triunfante, tinha superado, como era possível, aquela perturbação havia durado tanto tempo e agora parecia que ele não tinha mais nenhuma força pra exercer sobre mim. Ah, como eu estava feliz, tinha vontade de rir na cara dele, olhar nos olhos dele e não sentir nada, mas eu resolvi não brincar com o perigo, peguei a pilha de jornais que havia selecionado e levei até minha mesa.
Eram 15 horas, eu precisava entregar as reportagens até as 18h30min, debrucei-me sobre a mesa e comecei lê-las com a maior atenção para não deixar escapar nenhum detalhe. Eu estava empolgada, as coisas iam bem hoje, nada tinha dado errado. Enquanto lia as reportagens enrolava, frenética e incansavelmente os cabelos por entre os dedos, no momento em que me dei conta da velocidade com que o fazia, notei alguém se aproximando, mas não me virei, só acompanhei os passos e percebi que vinham em minha direção.
- Você vai ficar careca se continuar fazendo isso. Reconheci a voz de imediato.
- Muito engraçado, Mathias - ri enquanto soltava o cabelo dos dedos.
[Continua...]
Adorei! Você escreve muito bem, tem fulturo pela frente, me deicou especialmente curiosa e com certesa vou voltar aqui segunda que vem, parabéns mesmo!
ResponderExcluirAMEI s2
ResponderExcluir(thaiane anônima)
ResponderExcluirAdorei.
puts to vendo que essa historia vai ser bem gamante -s. to adorando amr
ResponderExcluirjess xx
Cara achei mt mt foda mesmo, continue escrevendo por favor D:
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