segunda-feira, 12 de abril de 2010

Fusão

Quando pensava nele ria e chorava, às vezes simultaneamente. Queria correr, juntar, abraçar e salvar, salvá-lo de si próprio que sazonalmente se autodestruía.
Via-o como um edifício desses litorâneos planejados mal e parcamente, podendo vir abaixo a qualquer momento por ter areia demais em cada um dos seus vinte andares.
Ela era o oposto, uma casa na planície com ciclopes profundos, mais de dez metros talvez. Abalável, mas nem tanto, precisava de um tornado ou um terremoto fortíssimo, enquanto
ele seria posto abaixo por qualquer abalo sísmico mínimo que fosse.
Invejavam um ao outro quando se observavam. A imponência dos vinte andares a fazia querer subir até lá e permanecer junto dele, no ar. A força das estruturas dela o fazia querer descer, talvez desmoronar para juntar-se a ela.
Uma manhã dessas um barulho abrasador acordou a todos. Uma cortina de fumaça se ergueu embaçando a visão e fazendo com que todos cobrissem os olhos.
- Olha lá! O edifício caiu sobre a casinha.
Estavam errados. Não foi um desmoronamento, um tombo ou uma queda, foi apenas a fusão entre fraco e forte!

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Reticências

No ônibus, voltando do trabalho com a cabeça cansada, tentando não pensar em nada para que os miolos não fervessem, pensei nele, justamente ele que faz meu cérebro inteiro entrar em ebulição.
Há mais de dois anos eu não o vejo, mas toda vez que nos falamos algo fica inacabado, a casca da ferida sempre solta e sangra, às vezes mais, outras vezes menos, depende do quão magoados estamos, de quantas vezes no dia pensamos sobre nós, quantas vezes no dia sentimos a ausência gritante que causamos um na vida do outro.
É sempre assim, a gente se machuca e se não se machuca sente falta. Falta da dor, falta do nó na garganta, sente falta da impotência diante da situação e falta de sentir a distância corroendo algo que nunca será corroído.
Se eu soubesse como as coisas seriam antes de tudo acontecer, eu teria dito não, teria mostrado como aquilo era errado e ele entenderia, ele sempre entende o que eu tenho a dizer, talvez porque sinta a mesma impotência, a mesma dor, a mesma falta.
Nossa vida tornou-se um novelo felpudo do qual não se pode sair, é um novelo quilométrico, que provavelmente tem suas extremidades atadas para que não possamos nos desvencilhar dele.
E a fuga durará para sempre? Nada é para sempre, não deve haver uma exceção, essa não deve ser a exceção. Tem de haver no mundo uma saída, um ponto de fuga, um bode expiatório para nossa dor.
O ônibus fez uma curva brusca, acho que quase bateu em algo, não sei. Minha cabeça bateu contra o vidro da janela, derrubando o fone do meu ouvido e fazendo desaparecer como fumaça o rosto dele da minha cabeça.
Mas nada é para sempre, a caixa do ônibus rangeu quando o motorista passou a marcha, o som me desligou e seu rosto voltou feito fumaça.
Antigamente, as coisas eram boas para nós, não havia obrigações, só precisávamos viver, agora ele não tem mais vontade, nem por ele nem por mim, o que magoa. Eu viveria por ele, morreria também, mas viver é muito mais difícil, para viver você tem que abrir mão de coisas, morrer não requer isso, você só morre e as coisas ficam. Problemas, contas, amores mal resolvidos, tristezas terrenas, a vida fica e com ela todas as complicações que vêm anexadas a nossa existência.
Ele não abriria mão, não é injustiça minha, é a verdade, foi ele quem disse, pois tem medo, é mais seguro viver provincialmente, sem ter de se acostumar as outras coisas e pessoas. Esse tipo de coisa faz com que eu pense, questione e fique indignada comigo mesma por nutrir esses sentimentos, por pensar em largar tudo por alguém que não largaria a saia comprida da avó por mim.
Se ele ouvisse meus pensamentos estaria ferido agora, que fira, pois verdade seja dita,a vida para mim não é vida para ele, o meu novelo interminável é um rolo de linha de cinco metros com pontas arrebentadas para ele.
O telefone tocou no fundo da bolsa e eu a revirei por alguns segundos até encontrá-lo.
- Oi
- Você está chegando?
- Estou no ônibus, levo meia hora para chegar ainda.
- Ah sim, deixei pizza, eu estou indo embora já.
- Tudo bem, brigada.
- Até, eu te amo.
- Até, eu também.
Não era em meu namorado que eu pensava e era tão hipócrita responder assim a quem não se sente o mesmo amor, me sentia suja por alimentar algo que não existe, pelo menos para mim.
Ele dormia comigo, acordava ao meu lado, fazia coisas o dia todo junto a mim, mas não existia, não aqui dentro, onde só havia a ebulição causada pelos sentimentos antigos que eu sentia pelo outro.
O outro que me fez mudar sem que eu sentisse e protestasse, sem que brigasse pelo que eu era. Mudança que me tornou fraca quando ele 'sumiu', mudança que arrebentou minhas convenções e fez com que o mundo tivesse outro significado, um significado fraco, feio e cinza.
A vida toda eu tinha sido algo dentro de um cubo de gelo que ele fez derreter, mas que eu consegui reconstruir, só que agora não é tão forte, parece que qualquer elevação de temperatura pode fazer com que o real apareça, com que a vida volte a ser fraca, feia e cinza.
As coisas mudaram, nós trocamos de papel, eu me tornei mais vulnerável e ele tomou de mim a força que existia e se congelou, agora só nós sabemos o caminho do congelamento e do degelo, o congelamento dos meus sentimentos e o degelo da fraqueza que ele sempre demonstrou, enquanto eu resolvia nossas vidas e brigava com os contras da nossa permanência.
- Moça, é aqui que você desce, não? Falou cobrador cutucando meu ombro.
- É sim, estava distraída. Levantei e fui saindo.
- Brigada. Gritei lá da porta.
O ônibus foi e eu fiquei estática na rua, pensando em não entrar em casa, não entrar com contato com ele, não ver seu rosto na minha home page. E mais, não queria ficar sozinha, pois se ficasse veria fotos antigas, ouviria músicas tristes e meu cérebro ferveria por conta de coisas sem solução, coisas passadas.
O passado era uma constante na minha vida, não tinha como escapar, porque era sempre a parte mais perfeita dela, a parte mais feliz, mas eu não tenho certeza que tenha sido assim, às vezes creio que essa idealização seja coisa minha, coisa imaginária mesmo, sempre parece tão bom quando me lembro das sensações, dos gostos, cheiro, da ingenuidade daquele tempo.
Agora a gente perdeu isso, não há mais um felicidade ideal, vamos morrer tentando achar copias nossas em outras pessoas, quando o mais sensato a se fazer é desistir do 'nunca mais' e voltarmos a ser duas pessoas em uma só.
Entrei em casa e o telefone tocou, corri e olhei no identificador de chamadas, era ele, o passado, querendo vir a tona em menos de cinco segundos dentro de casa.
Não o atendi, ele não sofreria por isso, não sabia que eu estava ali, mas eu sabia e uma ponta de arrependimento surgiu, como uma interrogação no meio da frase. No entanto, não me interessava o que ele queria, porque de certa forma eu sabia que aquele contato seria mais um sangramento da ferida antiga, no momento que eu atendesse e ouvisse seu sotaque arrastado o sangue jorraria e os dias seguintes seriam ensanguentados por um sangue desnecessário, que poderia ser evitado. E eu evitei...