Encontre-a em um banheiro imundo com a seringa já cravada no braço.
A cena era tão lastimável quanto seu estado, suas roupas estavam sujas, o cabelo louro desgrenhado e a maquiagem borrada. Seus olhos pesados ergueram-se e derramaram-se nos meus, a culpa inundou seu rosto e lágrimas escorreram pelo caminho negro traçado pela maquiagem.
A cada dia ela dava mais um passo para abismo e eu ali no meio do caminho tentando impedi-la de acabar consigo e comigo, tentando fazê-la superar ou pelo menos aceitar.
- Você fez de novo, baby – disse juntando-a do chão imundo.
- É uma tragédia, Murilo.
As palavras saiam pesadas de sua boca, seu corpo pesava o dobro quando estava assim, quase desmaiada, sem responder a estímulos. Não sentia mais raiva quando a encontrava, sentia alivio por achá-la viva e sem machucados.
Coloquei-a sentada em um banco da praça e liguei para os outros que também a procuravam.
- Débora?! Já encontrei Alice, ela estava onde eu imaginei. Avise aos outros, por favor.
- Como ela está?
O desespero de mãe era gritante em sua voz.
- Do mesmo jeito de sempre, vou cuidar dela e depois a deixo em casa.
- Mais uma vez obrigada, Murilo – sua voz era um misto de exaustão e humilhação.
- Não precisa agradecer. Tchau!
- Tchau.
Alice estava deitava no banco com os olhos arregalados fitando o céu e murmurava palavras sem sentido.
- Vamos! Disse erguendo-a.
- Me larga – gritou.
-Calma, Alice, sou eu. Vou te levar para casa.
- Não! Me larga agora – gritava e se debatia contra meu peito.
Não dava mais atenção ao que ela falava, não adiantava mais, era perda total de tempo tentar ouvi-la.
Ela gritou, esperneou até que eu a largasse dentro do carro e a prendesse ao cinto de segurança.
Entrei no carro e ela praguejava contra mim.
- Você é um nojento, eu te odeio Murilo – as palavras saiam pastosas de sua boca.
Erguia o braço tentando me acertar, mas parecia pesado demais.
- Sim, eu sei que odeia – concordei.
Era triste ver no que ela se transformou, no que seus sentimentos se tornaram e aceitar a decadência em que ela vivia.
Um ano atrás, quando nos conhecemos vi nela toda a vida que escapava de mim, andava rápido, falava pelos cotovelos e gesticulava o tempo todo, conhecia e era bem quista por todos. E agora isso, essa decomposição em vida, a corrosão da beleza interior e exterior, aquela porcaria havia engolido toda a luz e toda a vontade que vivia nela. Mas não era só isso, não foi apenas ela quem foi sugada, nós todos fomos, sua família, eu, os amigos mais próximos, todos nós estávamos exauridos e perdidos diante de tal situação.
Estacionei o carro em frente casa e carreguei-a para dentro entre socos, gritos e choro.
Às vezes tinha vontade de arrebentá-la ao meio, bater até que ela desistisse disso, mas não era assim que as coisas funcionavam e na realidade eu não queria machucá-la ainda mais, só queria que pudesse compreender, visse e reconhecesse a nova pessoa que surgiu de dentro dela.
Deitei-a na cama e tirei suas roupas sujas, enquanto ela chorava e praguejava contra tudo e todos. As roupas estavam imundas e fediam a lixo ou algo podre, os tênis estavam cheios de barro que já estava quase seco, não imaginava aonde ela tinha passado esses dois dias.
Separei uma muda de roupas limpas, levei-a até o banheiro, liguei o chuveiro e provei a temperatura da água.
- Não quero tomar banho – protestou.
- Eu não queria uma namorada drogada.
- Então me deixa ir, não preciso de você, não quero você – gritava.
Parecia mais consciente agora.
- Alice – gritei – fecha essa boca antes que eu perca o controle e sente a mão em você. Eu te deixaria se não fosse tarde demais, se você não tivesse destruído a vida de todos.
Sua boca estava semi-aberta e os olhos fixos em mim, e minhas mãos apertavam seus braços.
- Você não precisa de mim? Devia ter dito isso antes, eu te deixaria chapada naquele lugar imundo para que alguém te estuprasse ou te matasse.
- Você não sabe de nada, não se meta nisso – replicou.
- Eu estou metido nisso até o pescoço – gritei chacoalhando-a – você meteu todos nós nisso e todos estão definhando junto com esse lixo que você se transformou.
Joguei-a para frente do espelho.
- Olha bem, presta bem atenção no teu estado, parece uma mendiga imunda- segurei-a em frente o espelho por algum tempo.
Seus olhos umedeceram e então ela caiu em um pranto assustador, mas isso já era corriqueiro.
Chorou por horas, soluçou até cansar e pegar no sono. Fiquei ali, sentado a seu lado mexendo em seu cabelo macio, pensando em todas as crises dos últimos seis meses, no estado que ela se encontrava, pensando em desistir daquela confusão toda, mas seria impossível.
Ela parecia tão calma agora, respirava sem dificuldade, o rosto tinha cor outra vez, olhando assim dava até para esquecer todo o sofrimento que ela havia causado. No entanto quando ela acordasse o caos recomeçaria e ninguém poderia fazer nada, pois de uma forma ou de outra ela escaparia, desapareceria por alguns dias. Tudo outra vez.
Coloquei as roupas dela na máquina de lavar, fiz um café, fui para sala e assisti TV até dormir.
Acordei com o sol no rosto, pensei em Alice lá no quarto, dava calafrios imaginar o que teria de enfrentar quando ela acordasse. Fui até lá para vê-la, mas ela não estava na cama. Chamei por ela e nada, olhei na cozinha, no outro quarto, no quintal, na sacada onde ela gostava de ficar, mas nem sinal dela. O portão da frente ainda estava trancado, minhas chaves estavam no lugar e o carro na garagem, mas ela havia sumido. Chamei por ela outra vez e outra vez não respondeu.
Procurei em todo o lugar. Não, não procurei, faltava o banheiro dos fundos, corri até lá na esperança de encontrá-la. E encontrei.
O corpo pendia de um fio de luz amarrado na janela do banheiro, seu rosto estava roxo assim como as mãos mínimas e os pés. Algo brutal tomou conta de mim, do meu peito nasceu um grito que mais parecia um urro. Tirei-a de lá, tentei ressuscitá-la, mas ela já não respondia mais.
Morreu em um banheiro frio e praticamente abandonado, como já havia acontecido seis meses atrás quando cravou uma agulha em seu braço em outro banheiro qualquer.
quinta-feira, 29 de julho de 2010
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Boo!
Corri jardim adentro sabendo q ele estava lá me esperando, as garrafas de cerveja se chocavam durante a corrida, o tilintar delas faziam com que eu lembrasse o seu gosto gelado, garganta abaixo.
Abri a porta dos fundos, guardei a cerveja na geladeira e o chamei:
- Richard!
- Oi – respondeu.
- Eu trouxe a cerveja.
Ouvi sua risada e seus passos no segundo andar.
- Quantas?
- Doze!
- Quem mais vem?
- Ninguém, só nós dois.
- Pra que tanto?
- Pra gente morrer.
Nós rimos e lá em cima ele derrubou algo.
Estávamos em uma casa antiga, com janelas francesas e cortinas escuras. Às vezes eu não sabia como íamos parar em lugares como aquele, sempre tão antigos, tão arquitetonicamente ricos e eu me deliciava com toda história escondida em seus pilares.
Andei até a biblioteca, respirei fundo. O cheiro dos livros antigos encheu meus pulmões. Sentia a textura das páginas amarelas e rolava a naftalina entre os dedos quando inalava aquele ar. Ar familiar.
- O quê você está fazendo? – Richard gritou.
- Já subo.
Respondi com os olhos ainda fechados para não perder aquela sensação nostálgica. Nostalgia do que não foi, do que eu não vivi, nem senti, mas era meu quando eu respirava.
Fechei as portas da biblioteca e andei pelo corredor apertado e milhões de sussurros vazavam das paredes, como se elas quisessem me contar o que aconteceu, como se eu quisesse saber. E eu queria, parei e tentei ouvir. O som cessou. Tentei ouvir mais vezes, mas elas desistiram de contar.
Passei pela sala ampla, desliguei a TV e andei até a escada. As vozes sussurravam quando eu não pretendia ouvi-las.
Antes de subir olhei em volta, a luz que entrava pelas janelas era incrível, aquele avermelhado do fim da tarde fazia tudo ganhar movimento e Richard dava o som. Não sei que diabos ele estava fazendo, mas de minuto em minuto derrubava algo no chão de madeira grossa.
- Vem rápido – ele gritou.
E eu corri, parecia urgente, devia ser besteira, mas eu sempre acreditava quando a voz dele soava desesperada.
Na metade da escada algo me segurou, eu puxei, minha perna parecia presa.
-Merda- bradei, procurando nos degraus algo que me prendesse.
Nada nos degraus. Eu puxei a perna e ela continuava presa, forcei tentando subir e senti algo prender nela com mais força. O pânico começou a subir pelo estômago e a voz ficou embargada na garganta, atrás de mim não havia nada, mas no reflexo na televisão havia.
O contorno perfeito de um corpo prendia meu calcanhar e eu esperneei feito louca, as mãos presas no corrimão, mas a voz não saia.
“Não, você não vai. Saia da minha casa” as vozes diziam isso cada vez mais alto.
-Richard, Richard - o grito saiu abafado pelo desespero.
Ouvi ele correr e em menos de dois segundos estava na escada, perto de mim.
Pegou meu braço e puxou-me para cima, enquanto aquilo me puxava para baixo e repetia incansavelmente para que saísse dali.
Segurei o braço de Richard com as duas mãos cravando fundo as unhas nele. A força sob meu calcanhar cedeu e eu praticamente voei para cima e ele me segurou com uma força surpreendente, como jamais havia segurado antes. Afundei o rosto na curva de seu pescoço me perguntando o que havia acontecido.
- O que foi isso? – perguntou em estado de alerta, girando o corpo para monitorar as coisas ao nosso redor.
- Eu não sei.
Tinha até medo de olhar em volta, não sabia o que veria, não queria abrir os olhos, mas me afastei e olhei. Nada diferente. Janelas francesas, cortinas escuras, luz avermelhada.
Ouvia um zunido ainda, como se dez pessoas falassem ao mesmo tempo, tampei os ouvidos com força. Richard andava de um lado para outro, olhando atrás dos móveis quando um vaso de porcelana voou em sua direção. Surreal.
Com a mão ele protegeu o rosto e os estilhaços voaram pela sala inteira. Corri até ele, peguei sua mão ensangüentada e o arrastei até o banheiro. Coloquei-a debaixo d’água e tirei cuidadosamente os cacos que pontilhavam sua mão.
Eu estava apavorada, ele quase catatônico, não respondia quando eu perguntava e quanto maior o silêncio maior o meu pavor.
- Segura – disse enrolando uma toalha em sua mão.
- Eu não entendo – ele disse.
- Eu também não, mas eu sei o que eu vi e quero sair daqui agora.
E nós andamos o mais rápido possível para fora da casa, deixando para trás a cerveja, as janelas francesas e o pôr-do-sol .
Abri a porta dos fundos, guardei a cerveja na geladeira e o chamei:
- Richard!
- Oi – respondeu.
- Eu trouxe a cerveja.
Ouvi sua risada e seus passos no segundo andar.
- Quantas?
- Doze!
- Quem mais vem?
- Ninguém, só nós dois.
- Pra que tanto?
- Pra gente morrer.
Nós rimos e lá em cima ele derrubou algo.
Estávamos em uma casa antiga, com janelas francesas e cortinas escuras. Às vezes eu não sabia como íamos parar em lugares como aquele, sempre tão antigos, tão arquitetonicamente ricos e eu me deliciava com toda história escondida em seus pilares.
Andei até a biblioteca, respirei fundo. O cheiro dos livros antigos encheu meus pulmões. Sentia a textura das páginas amarelas e rolava a naftalina entre os dedos quando inalava aquele ar. Ar familiar.
- O quê você está fazendo? – Richard gritou.
- Já subo.
Respondi com os olhos ainda fechados para não perder aquela sensação nostálgica. Nostalgia do que não foi, do que eu não vivi, nem senti, mas era meu quando eu respirava.
Fechei as portas da biblioteca e andei pelo corredor apertado e milhões de sussurros vazavam das paredes, como se elas quisessem me contar o que aconteceu, como se eu quisesse saber. E eu queria, parei e tentei ouvir. O som cessou. Tentei ouvir mais vezes, mas elas desistiram de contar.
Passei pela sala ampla, desliguei a TV e andei até a escada. As vozes sussurravam quando eu não pretendia ouvi-las.
Antes de subir olhei em volta, a luz que entrava pelas janelas era incrível, aquele avermelhado do fim da tarde fazia tudo ganhar movimento e Richard dava o som. Não sei que diabos ele estava fazendo, mas de minuto em minuto derrubava algo no chão de madeira grossa.
- Vem rápido – ele gritou.
E eu corri, parecia urgente, devia ser besteira, mas eu sempre acreditava quando a voz dele soava desesperada.
Na metade da escada algo me segurou, eu puxei, minha perna parecia presa.
-Merda- bradei, procurando nos degraus algo que me prendesse.
Nada nos degraus. Eu puxei a perna e ela continuava presa, forcei tentando subir e senti algo prender nela com mais força. O pânico começou a subir pelo estômago e a voz ficou embargada na garganta, atrás de mim não havia nada, mas no reflexo na televisão havia.
O contorno perfeito de um corpo prendia meu calcanhar e eu esperneei feito louca, as mãos presas no corrimão, mas a voz não saia.
“Não, você não vai. Saia da minha casa” as vozes diziam isso cada vez mais alto.
-Richard, Richard - o grito saiu abafado pelo desespero.
Ouvi ele correr e em menos de dois segundos estava na escada, perto de mim.
Pegou meu braço e puxou-me para cima, enquanto aquilo me puxava para baixo e repetia incansavelmente para que saísse dali.
Segurei o braço de Richard com as duas mãos cravando fundo as unhas nele. A força sob meu calcanhar cedeu e eu praticamente voei para cima e ele me segurou com uma força surpreendente, como jamais havia segurado antes. Afundei o rosto na curva de seu pescoço me perguntando o que havia acontecido.
- O que foi isso? – perguntou em estado de alerta, girando o corpo para monitorar as coisas ao nosso redor.
- Eu não sei.
Tinha até medo de olhar em volta, não sabia o que veria, não queria abrir os olhos, mas me afastei e olhei. Nada diferente. Janelas francesas, cortinas escuras, luz avermelhada.
Ouvia um zunido ainda, como se dez pessoas falassem ao mesmo tempo, tampei os ouvidos com força. Richard andava de um lado para outro, olhando atrás dos móveis quando um vaso de porcelana voou em sua direção. Surreal.
Com a mão ele protegeu o rosto e os estilhaços voaram pela sala inteira. Corri até ele, peguei sua mão ensangüentada e o arrastei até o banheiro. Coloquei-a debaixo d’água e tirei cuidadosamente os cacos que pontilhavam sua mão.
Eu estava apavorada, ele quase catatônico, não respondia quando eu perguntava e quanto maior o silêncio maior o meu pavor.
- Segura – disse enrolando uma toalha em sua mão.
- Eu não entendo – ele disse.
- Eu também não, mas eu sei o que eu vi e quero sair daqui agora.
E nós andamos o mais rápido possível para fora da casa, deixando para trás a cerveja, as janelas francesas e o pôr-do-sol .
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