Eu até gostaria de escrever mais, mas não sai nada exatamente concreto.
As frases pipocam na minha cabeça e não têm liga, fica tudo ali, solto, vago, fervendo e fervendo até a cabeça doer e eu esquecer o que era pra ter sido escrito, ou ser interrompida por alguém dizendo:- Quanto custa, moça?
- Custa meu pensamento, queridona!
Entããão, por algum tempo pensarei e vocês? Well, imaginem!
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
domingo, 10 de outubro de 2010
Corta-fogo
A cena é costumeira. Na sala, em frente à televisão, no sofá de dois lugares.
A garota gira a aliança na mão esquerda, ele zapeia os canais.
Próximos fisicamente e só.
Depois de mais de quarenta minutos em silêncio, ela pergunta:
- Você sente minha falta?
Ele digere a pergunta, engole seco e ainda olhando para frente, replica:
- Achei que você não se importasse.
- É, eu também achava, mas...
Não continuou a frase para não passar por cima de si, por egoísmo.
- Mas o quê?
- Nada, é bobagem.
- Hum.
Olhou de novo para televisão, prestou atenção no trailler.
- Eu queria ver esse filme – riu. Deve ser engraçado.
Ela olhava para televisão, mas não via, pensava em tudo ao mesmo tempo e não se encontrava. Ele gargalhou fazendo-a emergir de si.
- Sempre tem um bobo - riu mais alto.
- É, sempre tem.
respondeu se perguntando quem era o bobo ali, agora. Levantou, foi até a cozinha.
- Vou pegar água, quer?
-Não.
Voltou com o copo cheio, sentou e pensou, tentou pelo menos.
- Olha isso no tapete - disse ele. Foi o cachorro, ele vomitou ali.
- Que nojo! Não vai limpar?
- Não, já coloquei um jornal ali em cima, só tem a mancha agora.
- Que nojo! Que porco!
A resposta era automática, como se já viesse pronta dias antes. Ele desligou a televisão. Ela girava o copo com o resto d’água, para misturar o homogêneo, para dissolver os pensamentos.
- Sabe...
Ela tentou falar, mas travou. Sem sucesso.
- Hum. Ele esperou com a habitual paciência.
E mais algumas vezes na garganta dele vibraram algumas notas que permaneceram engasgadas. Ficou tentando não arriscar e querendo ao mesmo tempo.
- O que é? Fala logo!
A paciência monstruosa tinha se esvaído.
Ela respirou fundo e deixou escapar uma frase mal falada.
- Não tem porque a gente continuar.
- Continuar o quê?
Batendo tazzo, a gente não deve continuar batendo tazzo. Que pergunta estúpida.
- Nós dois.
Mesmo irritada esperava que ele protestasse que dissesse que as coisas não eram assim, que ela era radical demais.
- Nunca achei que tivesse algo para continuar.
Com uma frase ele frustrou todas as suas expectativas.
Os olhos estalaram em surpresa a boca se abriu em O e a pergunta rolou boca a fora:
- Nunca?
- Sim, nunca. Por quê?
- Por nada... Mas tudo bem.
Alguma coisa dentro dela fez ‘téc’, uma coisa que ela nem lembrava que existia, que nem sabia mais como usar, o sentimento. E o frio dentro dela tomou conta da sala.
- Eu achei que importava para você.
Ele disse isso porque acreditava, porque parecia e além de parecer era verdade, mas o passo foi infalso, ele passou do limite, do limite dela que era bem mais do que egoísta, era retida, contida, medrosa.
- É eu também achei, mas não importa.
Superficialmente era verdade, por dentro mentira deslavada.
Levantou e andou, ele a seguiu. Abriu a porta, andou pelo corredor.
- Tem certeza?
Ele perguntou enquanto ela apertava desesperadamente o botão do elevador.
“Como demora” pensava “elevador do demônio, como demora” e batia o pé no chão.
- Tenho, sim.
- Então tá.
Ele olhou para a mão dela que tinha a marca da aliança girada, que agora era aliança esquecida, abandonada, jogada no canto do sofá.
O elevador ainda estava no 16º e o silêncio chegava arder nos ouvidos.
- Eu vou de escada - desistiu. Tchau!
- Tchau!
Fechou a porta corta-fogo que cortou ele também, da vida dela.
A garota gira a aliança na mão esquerda, ele zapeia os canais.
Próximos fisicamente e só.
Depois de mais de quarenta minutos em silêncio, ela pergunta:
- Você sente minha falta?
Ele digere a pergunta, engole seco e ainda olhando para frente, replica:
- Achei que você não se importasse.
- É, eu também achava, mas...
Não continuou a frase para não passar por cima de si, por egoísmo.
- Mas o quê?
- Nada, é bobagem.
- Hum.
Olhou de novo para televisão, prestou atenção no trailler.
- Eu queria ver esse filme – riu. Deve ser engraçado.
Ela olhava para televisão, mas não via, pensava em tudo ao mesmo tempo e não se encontrava. Ele gargalhou fazendo-a emergir de si.
- Sempre tem um bobo - riu mais alto.
- É, sempre tem.
respondeu se perguntando quem era o bobo ali, agora. Levantou, foi até a cozinha.
- Vou pegar água, quer?
-Não.
Voltou com o copo cheio, sentou e pensou, tentou pelo menos.
- Olha isso no tapete - disse ele. Foi o cachorro, ele vomitou ali.
- Que nojo! Não vai limpar?
- Não, já coloquei um jornal ali em cima, só tem a mancha agora.
- Que nojo! Que porco!
A resposta era automática, como se já viesse pronta dias antes. Ele desligou a televisão. Ela girava o copo com o resto d’água, para misturar o homogêneo, para dissolver os pensamentos.
- Sabe...
Ela tentou falar, mas travou. Sem sucesso.
- Hum. Ele esperou com a habitual paciência.
E mais algumas vezes na garganta dele vibraram algumas notas que permaneceram engasgadas. Ficou tentando não arriscar e querendo ao mesmo tempo.
- O que é? Fala logo!
A paciência monstruosa tinha se esvaído.
Ela respirou fundo e deixou escapar uma frase mal falada.
- Não tem porque a gente continuar.
- Continuar o quê?
Batendo tazzo, a gente não deve continuar batendo tazzo. Que pergunta estúpida.
- Nós dois.
Mesmo irritada esperava que ele protestasse que dissesse que as coisas não eram assim, que ela era radical demais.
- Nunca achei que tivesse algo para continuar.
Com uma frase ele frustrou todas as suas expectativas.
Os olhos estalaram em surpresa a boca se abriu em O e a pergunta rolou boca a fora:
- Nunca?
- Sim, nunca. Por quê?
- Por nada... Mas tudo bem.
Alguma coisa dentro dela fez ‘téc’, uma coisa que ela nem lembrava que existia, que nem sabia mais como usar, o sentimento. E o frio dentro dela tomou conta da sala.
- Eu achei que importava para você.
Ele disse isso porque acreditava, porque parecia e além de parecer era verdade, mas o passo foi infalso, ele passou do limite, do limite dela que era bem mais do que egoísta, era retida, contida, medrosa.
- É eu também achei, mas não importa.
Superficialmente era verdade, por dentro mentira deslavada.
Levantou e andou, ele a seguiu. Abriu a porta, andou pelo corredor.
- Tem certeza?
Ele perguntou enquanto ela apertava desesperadamente o botão do elevador.
“Como demora” pensava “elevador do demônio, como demora” e batia o pé no chão.
- Tenho, sim.
- Então tá.
Ele olhou para a mão dela que tinha a marca da aliança girada, que agora era aliança esquecida, abandonada, jogada no canto do sofá.
O elevador ainda estava no 16º e o silêncio chegava arder nos ouvidos.
- Eu vou de escada - desistiu. Tchau!
- Tchau!
Fechou a porta corta-fogo que cortou ele também, da vida dela.
terça-feira, 5 de outubro de 2010
Eu preciso ficar assim, em casa, no escuro esperando minha mente carregar toda a informação da escrita. Esperando que algo - que eu desconheço - decida qual é a hora de escrever, qual é a situação, a circunstância, qual é o tema.
Mesmo que o tema seja o vazio sempre haverá algo a escrever, aliás, é sobre o vazio que eu escrevo. O meu. O vazio que eu inventei. O vazio que eu vi em alguém que andava aparentemente sem destino pelo canteiro central.
E eu desbravo os vazio dos outros. Cada canto. Cada estrofe.
Como se servisse de consolo, como se preenchesse algo que eu esqueci de sublinhar.
Cristine, 16
Mesmo que o tema seja o vazio sempre haverá algo a escrever, aliás, é sobre o vazio que eu escrevo. O meu. O vazio que eu inventei. O vazio que eu vi em alguém que andava aparentemente sem destino pelo canteiro central.
E eu desbravo os vazio dos outros. Cada canto. Cada estrofe.
Como se servisse de consolo, como se preenchesse algo que eu esqueci de sublinhar.
Cristine, 16
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Veio de não sei onde e ficou.
- Não vou mentir para você, eu tenho ciúmes desse cara.
No outro lado da linha ela riu como nunca antes.
- Mas por quê?
- Porque você encontrou alguém e pra mim nós somos para sempre, como uma doença ou sei lá o que.
- Só se for uma doença venérea.
Ela ria sem parar, para mascarar, chutar para baixo do tapete a dor que vinha à tona quando se falavam - uma vez a cada trimestre.
A risada dela invadia os ouvidos dele e o confundia, se ao menos pudesse entender o que ela sentia agora, se era ironia ou desespero.
- Não tem graça – ele replicou.
- Eu achei engraçado!
Disse tentando engolir a risada.
- E o que é que você não acha?
Riu na tentativa de manter o humor dela, mas o silêncio rolou pelos fios telefônicos, atravessando os estados, batendo em cada poste que aparecia, transformando-se em uma avalanche.
Avalanche de desânimo.
- Não te ver há mais de três anos. Isso não é engraçado.
E o desânimo vinha rolando montanha à baixo, estado a baixo, cada vez mais rápido, cada vez maior. Peso, altura, percurso, aceleração e gravidade!
- Não entendo esse teu masoquismo.
Dizia que não entendia, no entanto gostava de relembrar dos sabores e dos cheiros dela quando se sentia sozinho.
- Se eu não me torturasse não teria mais vontade de voltar, entende? Enquanto meus ouvidos arderem ao escutar teu nome vou ter vontade de voltar, mas se isso passar eu vou esquecer e você vai ser apenas mais uma história que eu escrevi.
- Hum! Essas coisas me machucam também.
- Eu sei.
- Sabe?
- Sim. Sadomasoquismo. Quando deixar de doer em ti, eu vou te esquecer.
No outro lado da linha ela riu como nunca antes.
- Mas por quê?
- Porque você encontrou alguém e pra mim nós somos para sempre, como uma doença ou sei lá o que.
- Só se for uma doença venérea.
Ela ria sem parar, para mascarar, chutar para baixo do tapete a dor que vinha à tona quando se falavam - uma vez a cada trimestre.
A risada dela invadia os ouvidos dele e o confundia, se ao menos pudesse entender o que ela sentia agora, se era ironia ou desespero.
- Não tem graça – ele replicou.
- Eu achei engraçado!
Disse tentando engolir a risada.
- E o que é que você não acha?
Riu na tentativa de manter o humor dela, mas o silêncio rolou pelos fios telefônicos, atravessando os estados, batendo em cada poste que aparecia, transformando-se em uma avalanche.
Avalanche de desânimo.
- Não te ver há mais de três anos. Isso não é engraçado.
E o desânimo vinha rolando montanha à baixo, estado a baixo, cada vez mais rápido, cada vez maior. Peso, altura, percurso, aceleração e gravidade!
- Não entendo esse teu masoquismo.
Dizia que não entendia, no entanto gostava de relembrar dos sabores e dos cheiros dela quando se sentia sozinho.
- Se eu não me torturasse não teria mais vontade de voltar, entende? Enquanto meus ouvidos arderem ao escutar teu nome vou ter vontade de voltar, mas se isso passar eu vou esquecer e você vai ser apenas mais uma história que eu escrevi.
- Hum! Essas coisas me machucam também.
- Eu sei.
- Sabe?
- Sim. Sadomasoquismo. Quando deixar de doer em ti, eu vou te esquecer.
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
1.900 Beira-mar
Acordou zonzo, o perfume dela no ar, tateou a cama esperando encontrá-la como encontrou na madrugada, mas agora ela não estava.
Chamou seu nome, mas o silêncio tomava conta da casa, o cachorro correu e pulou na cama queredo carinho, balançando o rabo, lambendo e pulando feito louco, se falasse estaria gritando: CARINHO, CARINHO, CARINHO.
- Vem cá, amigão. Puxou-o para si e o abraçou bagunçando aquele monte de pêlos.
- Sabe onde ela está, Tobby? Para onde foi aquela bruxinha?
O cachorro continuava correndo em cima da cama, balançando o rabo e latindo.
- Acho que ela não gosta de você, tem medo ou sei lá. E o cachorro continuava histérico, correndo da cama até a porta. “COMIDA, COMIDA, COMIDA”, pediria se falasse.
- Eu estou com fome também, vem.
Foi à área de serviço, colocou ração no pote de Tobby e pegou umas bolachas no armário. Voltou para o quarto, tentou ligar para Lara – chamou até cair. “Estranho”, pensou. Deixou o celular no criado mudo, foi até a escrivaninha ligar o notebook e no canto superior esquerdo da tela estava colado um bilhete amarelo, deduziu que tinha sido escrito as pressas pelos garranchos ali escritos.
“Pronto, você teve o que queria. Adeus!”
- Louca – gritou.
Tobby já estava junto dele mais uma vez e latiu como se concordasse.
- Porra, Tobby, ela é insana. Não, insano sou eu que converso com o cachorro em uma situação como essa.
Tobby balançava o rabo todo contente, aquele contentamento inexplicável dos cachorros, mordia o cadarço dos seus tênis e rolava no chão. “BRINCA COMIGO, BRINCA COMIGO, BRINCA COMIGO”.
- Agora não vai dar, amigão, vou procurar essa louca.
Vestiu-se, calçou os tênis, amarrou os cadarços babados e saiu correndo escada abaixo.
Era um dia frio para o verão, o vento estava gelado e os céu coberto de nuvens escuras, logo choveria. Ele andou pelos quarteirões próximos procurando por ela, foi até os bares que ela costumava ir, no mercado onde ela gostava de comprar cigarros e suco de uva, na livraria e na biblioteca onde ela passava horas perdida em meio ao mundo de encantamento das letras. Porém não havia nem rasto, ninguém a tinha visto esta manhã.
Tentou ligar para ela mais de cinquenta vezes, enquanto andou a sua procura, mas ela desligou o celular.
“Diabo, diabo”, pensava aturdido, “O que deu nela pra achar isso? Onde ela se meteu? Ontem ela parecia tão feliz, tão satisfeita quando disse ‘eu gosto de você’ e seus dedos dançaram em meu rosto até eu pegar no sono. O que deu nela?”. Os pensamentos rolavam em um misto de lembranças e confusão.
Entrou na primeira padaria que encontrou para beber um café e colocar os pensamentos no lugar, porque até então só conseguia pensar “diabo de guria estranha”.
No balcão pediu um café preto e um pão de queijo, junto com o pedido chegou um amigo, amigo esse que também conhecia Lara.
- Ih, caiu da cama? – perguntou o amigo.
- Lara me derrubou.
- Eu a vi não tem muito tempo, estava indo na direção da praia. Acho que nem me viu, passou por mim mais rápido que o vento. Ela anda estranha ultimamente, você não acha?
- Acho, acho sim. Tenho que ir agora. Para qual lado da praia ela foi?
- Para o sul, deve estar perto da rua 1.900, ela gosta dos bancos de lá.
- Gosta?
- Sim, por causa das gravuras de peixes vazadas no encosto – riu lembrado do discurso que ela sempre fazia sobre “as incríveis gravuras dos peixes”.
- Ah sim, valeu, cara. Foi bom te encontrar. Tchau.
Nem deu tempo de ouvir a resposta, pois quando o outro respondeu Davi já dobrava a esquina em direção a rua 1.900. Correu dois quarteirões até avistá-la.
Encontrou-a onde o amigo dissera, rua 1.900 beira-mar no banco com gravuras de peixes, e por um segundo sentiu ciúmes por ele saber tão bem sobre suas preferências.
Atravessou a rua e a viu mais de perto, cabelo preso, vestido azul, os dentes dele impressos na pele branca dos ombros e do pescoço e os pés descalços. Naquela hora, sentiu brotar dentro de si uma ternura sem precedentes, queria carregá-la dali e fazer com que todos os pensamentos doentios de sua cabeça se apagassem.
Ela sabia que ele estava ali, logo atrás, estático, sentiu seu cheiro vindo com o vento, mas não se virou, apenas secou as lágrimas e tentou engolir os soluços.
- Oi – disse ele sentando-se ao lado dela.
- Oi – respondeu afastando o corpo.
Olhou para ela e tocou seu rosto inchado de tanto chorar, ela recuou.
- Vem cá – tentou abraçá-la.
- Não, Davi.
Ignorando sua recusa a puxou para perto e a segurou forte. Do céu e dos olhos dela a água veio abaixo, misturando o salgado e o doce, a paranóia e a segurança, o temporal e o pranto.
- Você entendeu tudo errado, bruxinha – beijou sua testa fazendo escapar de sua boca um sorriso. – Deixa eu te tirar daqui antes que um raio nos parta ao meio.
Correram para casa dela, trocaram as roupas molhadas por outras secas e quentes, viraram o sofá na direção da varanda para olhar o temporal lá fora e ficaram ali em silêncio por um tempo.
- Tobby sentiu tua falta.
- E você?
- Eu também.
- Que bom, porque eu não gosto do Tobby.
- É, ele sabe.
Chamou seu nome, mas o silêncio tomava conta da casa, o cachorro correu e pulou na cama queredo carinho, balançando o rabo, lambendo e pulando feito louco, se falasse estaria gritando: CARINHO, CARINHO, CARINHO.
- Vem cá, amigão. Puxou-o para si e o abraçou bagunçando aquele monte de pêlos.
- Sabe onde ela está, Tobby? Para onde foi aquela bruxinha?
O cachorro continuava correndo em cima da cama, balançando o rabo e latindo.
- Acho que ela não gosta de você, tem medo ou sei lá. E o cachorro continuava histérico, correndo da cama até a porta. “COMIDA, COMIDA, COMIDA”, pediria se falasse.
- Eu estou com fome também, vem.
Foi à área de serviço, colocou ração no pote de Tobby e pegou umas bolachas no armário. Voltou para o quarto, tentou ligar para Lara – chamou até cair. “Estranho”, pensou. Deixou o celular no criado mudo, foi até a escrivaninha ligar o notebook e no canto superior esquerdo da tela estava colado um bilhete amarelo, deduziu que tinha sido escrito as pressas pelos garranchos ali escritos.
“Pronto, você teve o que queria. Adeus!”
- Louca – gritou.
Tobby já estava junto dele mais uma vez e latiu como se concordasse.
- Porra, Tobby, ela é insana. Não, insano sou eu que converso com o cachorro em uma situação como essa.
Tobby balançava o rabo todo contente, aquele contentamento inexplicável dos cachorros, mordia o cadarço dos seus tênis e rolava no chão. “BRINCA COMIGO, BRINCA COMIGO, BRINCA COMIGO”.
- Agora não vai dar, amigão, vou procurar essa louca.
Vestiu-se, calçou os tênis, amarrou os cadarços babados e saiu correndo escada abaixo.
Era um dia frio para o verão, o vento estava gelado e os céu coberto de nuvens escuras, logo choveria. Ele andou pelos quarteirões próximos procurando por ela, foi até os bares que ela costumava ir, no mercado onde ela gostava de comprar cigarros e suco de uva, na livraria e na biblioteca onde ela passava horas perdida em meio ao mundo de encantamento das letras. Porém não havia nem rasto, ninguém a tinha visto esta manhã.
Tentou ligar para ela mais de cinquenta vezes, enquanto andou a sua procura, mas ela desligou o celular.
“Diabo, diabo”, pensava aturdido, “O que deu nela pra achar isso? Onde ela se meteu? Ontem ela parecia tão feliz, tão satisfeita quando disse ‘eu gosto de você’ e seus dedos dançaram em meu rosto até eu pegar no sono. O que deu nela?”. Os pensamentos rolavam em um misto de lembranças e confusão.
Entrou na primeira padaria que encontrou para beber um café e colocar os pensamentos no lugar, porque até então só conseguia pensar “diabo de guria estranha”.
No balcão pediu um café preto e um pão de queijo, junto com o pedido chegou um amigo, amigo esse que também conhecia Lara.
- Ih, caiu da cama? – perguntou o amigo.
- Lara me derrubou.
- Eu a vi não tem muito tempo, estava indo na direção da praia. Acho que nem me viu, passou por mim mais rápido que o vento. Ela anda estranha ultimamente, você não acha?
- Acho, acho sim. Tenho que ir agora. Para qual lado da praia ela foi?
- Para o sul, deve estar perto da rua 1.900, ela gosta dos bancos de lá.
- Gosta?
- Sim, por causa das gravuras de peixes vazadas no encosto – riu lembrado do discurso que ela sempre fazia sobre “as incríveis gravuras dos peixes”.
- Ah sim, valeu, cara. Foi bom te encontrar. Tchau.
Nem deu tempo de ouvir a resposta, pois quando o outro respondeu Davi já dobrava a esquina em direção a rua 1.900. Correu dois quarteirões até avistá-la.
Encontrou-a onde o amigo dissera, rua 1.900 beira-mar no banco com gravuras de peixes, e por um segundo sentiu ciúmes por ele saber tão bem sobre suas preferências.
Atravessou a rua e a viu mais de perto, cabelo preso, vestido azul, os dentes dele impressos na pele branca dos ombros e do pescoço e os pés descalços. Naquela hora, sentiu brotar dentro de si uma ternura sem precedentes, queria carregá-la dali e fazer com que todos os pensamentos doentios de sua cabeça se apagassem.
Ela sabia que ele estava ali, logo atrás, estático, sentiu seu cheiro vindo com o vento, mas não se virou, apenas secou as lágrimas e tentou engolir os soluços.
- Oi – disse ele sentando-se ao lado dela.
- Oi – respondeu afastando o corpo.
Olhou para ela e tocou seu rosto inchado de tanto chorar, ela recuou.
- Vem cá – tentou abraçá-la.
- Não, Davi.
Ignorando sua recusa a puxou para perto e a segurou forte. Do céu e dos olhos dela a água veio abaixo, misturando o salgado e o doce, a paranóia e a segurança, o temporal e o pranto.
- Você entendeu tudo errado, bruxinha – beijou sua testa fazendo escapar de sua boca um sorriso. – Deixa eu te tirar daqui antes que um raio nos parta ao meio.
Correram para casa dela, trocaram as roupas molhadas por outras secas e quentes, viraram o sofá na direção da varanda para olhar o temporal lá fora e ficaram ali em silêncio por um tempo.
- Tobby sentiu tua falta.
- E você?
- Eu também.
- Que bom, porque eu não gosto do Tobby.
- É, ele sabe.
quinta-feira, 29 de julho de 2010
No fim do fundo.
Encontre-a em um banheiro imundo com a seringa já cravada no braço.
A cena era tão lastimável quanto seu estado, suas roupas estavam sujas, o cabelo louro desgrenhado e a maquiagem borrada. Seus olhos pesados ergueram-se e derramaram-se nos meus, a culpa inundou seu rosto e lágrimas escorreram pelo caminho negro traçado pela maquiagem.
A cada dia ela dava mais um passo para abismo e eu ali no meio do caminho tentando impedi-la de acabar consigo e comigo, tentando fazê-la superar ou pelo menos aceitar.
- Você fez de novo, baby – disse juntando-a do chão imundo.
- É uma tragédia, Murilo.
As palavras saiam pesadas de sua boca, seu corpo pesava o dobro quando estava assim, quase desmaiada, sem responder a estímulos. Não sentia mais raiva quando a encontrava, sentia alivio por achá-la viva e sem machucados.
Coloquei-a sentada em um banco da praça e liguei para os outros que também a procuravam.
- Débora?! Já encontrei Alice, ela estava onde eu imaginei. Avise aos outros, por favor.
- Como ela está?
O desespero de mãe era gritante em sua voz.
- Do mesmo jeito de sempre, vou cuidar dela e depois a deixo em casa.
- Mais uma vez obrigada, Murilo – sua voz era um misto de exaustão e humilhação.
- Não precisa agradecer. Tchau!
- Tchau.
Alice estava deitava no banco com os olhos arregalados fitando o céu e murmurava palavras sem sentido.
- Vamos! Disse erguendo-a.
- Me larga – gritou.
-Calma, Alice, sou eu. Vou te levar para casa.
- Não! Me larga agora – gritava e se debatia contra meu peito.
Não dava mais atenção ao que ela falava, não adiantava mais, era perda total de tempo tentar ouvi-la.
Ela gritou, esperneou até que eu a largasse dentro do carro e a prendesse ao cinto de segurança.
Entrei no carro e ela praguejava contra mim.
- Você é um nojento, eu te odeio Murilo – as palavras saiam pastosas de sua boca.
Erguia o braço tentando me acertar, mas parecia pesado demais.
- Sim, eu sei que odeia – concordei.
Era triste ver no que ela se transformou, no que seus sentimentos se tornaram e aceitar a decadência em que ela vivia.
Um ano atrás, quando nos conhecemos vi nela toda a vida que escapava de mim, andava rápido, falava pelos cotovelos e gesticulava o tempo todo, conhecia e era bem quista por todos. E agora isso, essa decomposição em vida, a corrosão da beleza interior e exterior, aquela porcaria havia engolido toda a luz e toda a vontade que vivia nela. Mas não era só isso, não foi apenas ela quem foi sugada, nós todos fomos, sua família, eu, os amigos mais próximos, todos nós estávamos exauridos e perdidos diante de tal situação.
Estacionei o carro em frente casa e carreguei-a para dentro entre socos, gritos e choro.
Às vezes tinha vontade de arrebentá-la ao meio, bater até que ela desistisse disso, mas não era assim que as coisas funcionavam e na realidade eu não queria machucá-la ainda mais, só queria que pudesse compreender, visse e reconhecesse a nova pessoa que surgiu de dentro dela.
Deitei-a na cama e tirei suas roupas sujas, enquanto ela chorava e praguejava contra tudo e todos. As roupas estavam imundas e fediam a lixo ou algo podre, os tênis estavam cheios de barro que já estava quase seco, não imaginava aonde ela tinha passado esses dois dias.
Separei uma muda de roupas limpas, levei-a até o banheiro, liguei o chuveiro e provei a temperatura da água.
- Não quero tomar banho – protestou.
- Eu não queria uma namorada drogada.
- Então me deixa ir, não preciso de você, não quero você – gritava.
Parecia mais consciente agora.
- Alice – gritei – fecha essa boca antes que eu perca o controle e sente a mão em você. Eu te deixaria se não fosse tarde demais, se você não tivesse destruído a vida de todos.
Sua boca estava semi-aberta e os olhos fixos em mim, e minhas mãos apertavam seus braços.
- Você não precisa de mim? Devia ter dito isso antes, eu te deixaria chapada naquele lugar imundo para que alguém te estuprasse ou te matasse.
- Você não sabe de nada, não se meta nisso – replicou.
- Eu estou metido nisso até o pescoço – gritei chacoalhando-a – você meteu todos nós nisso e todos estão definhando junto com esse lixo que você se transformou.
Joguei-a para frente do espelho.
- Olha bem, presta bem atenção no teu estado, parece uma mendiga imunda- segurei-a em frente o espelho por algum tempo.
Seus olhos umedeceram e então ela caiu em um pranto assustador, mas isso já era corriqueiro.
Chorou por horas, soluçou até cansar e pegar no sono. Fiquei ali, sentado a seu lado mexendo em seu cabelo macio, pensando em todas as crises dos últimos seis meses, no estado que ela se encontrava, pensando em desistir daquela confusão toda, mas seria impossível.
Ela parecia tão calma agora, respirava sem dificuldade, o rosto tinha cor outra vez, olhando assim dava até para esquecer todo o sofrimento que ela havia causado. No entanto quando ela acordasse o caos recomeçaria e ninguém poderia fazer nada, pois de uma forma ou de outra ela escaparia, desapareceria por alguns dias. Tudo outra vez.
Coloquei as roupas dela na máquina de lavar, fiz um café, fui para sala e assisti TV até dormir.
Acordei com o sol no rosto, pensei em Alice lá no quarto, dava calafrios imaginar o que teria de enfrentar quando ela acordasse. Fui até lá para vê-la, mas ela não estava na cama. Chamei por ela e nada, olhei na cozinha, no outro quarto, no quintal, na sacada onde ela gostava de ficar, mas nem sinal dela. O portão da frente ainda estava trancado, minhas chaves estavam no lugar e o carro na garagem, mas ela havia sumido. Chamei por ela outra vez e outra vez não respondeu.
Procurei em todo o lugar. Não, não procurei, faltava o banheiro dos fundos, corri até lá na esperança de encontrá-la. E encontrei.
O corpo pendia de um fio de luz amarrado na janela do banheiro, seu rosto estava roxo assim como as mãos mínimas e os pés. Algo brutal tomou conta de mim, do meu peito nasceu um grito que mais parecia um urro. Tirei-a de lá, tentei ressuscitá-la, mas ela já não respondia mais.
Morreu em um banheiro frio e praticamente abandonado, como já havia acontecido seis meses atrás quando cravou uma agulha em seu braço em outro banheiro qualquer.
A cena era tão lastimável quanto seu estado, suas roupas estavam sujas, o cabelo louro desgrenhado e a maquiagem borrada. Seus olhos pesados ergueram-se e derramaram-se nos meus, a culpa inundou seu rosto e lágrimas escorreram pelo caminho negro traçado pela maquiagem.
A cada dia ela dava mais um passo para abismo e eu ali no meio do caminho tentando impedi-la de acabar consigo e comigo, tentando fazê-la superar ou pelo menos aceitar.
- Você fez de novo, baby – disse juntando-a do chão imundo.
- É uma tragédia, Murilo.
As palavras saiam pesadas de sua boca, seu corpo pesava o dobro quando estava assim, quase desmaiada, sem responder a estímulos. Não sentia mais raiva quando a encontrava, sentia alivio por achá-la viva e sem machucados.
Coloquei-a sentada em um banco da praça e liguei para os outros que também a procuravam.
- Débora?! Já encontrei Alice, ela estava onde eu imaginei. Avise aos outros, por favor.
- Como ela está?
O desespero de mãe era gritante em sua voz.
- Do mesmo jeito de sempre, vou cuidar dela e depois a deixo em casa.
- Mais uma vez obrigada, Murilo – sua voz era um misto de exaustão e humilhação.
- Não precisa agradecer. Tchau!
- Tchau.
Alice estava deitava no banco com os olhos arregalados fitando o céu e murmurava palavras sem sentido.
- Vamos! Disse erguendo-a.
- Me larga – gritou.
-Calma, Alice, sou eu. Vou te levar para casa.
- Não! Me larga agora – gritava e se debatia contra meu peito.
Não dava mais atenção ao que ela falava, não adiantava mais, era perda total de tempo tentar ouvi-la.
Ela gritou, esperneou até que eu a largasse dentro do carro e a prendesse ao cinto de segurança.
Entrei no carro e ela praguejava contra mim.
- Você é um nojento, eu te odeio Murilo – as palavras saiam pastosas de sua boca.
Erguia o braço tentando me acertar, mas parecia pesado demais.
- Sim, eu sei que odeia – concordei.
Era triste ver no que ela se transformou, no que seus sentimentos se tornaram e aceitar a decadência em que ela vivia.
Um ano atrás, quando nos conhecemos vi nela toda a vida que escapava de mim, andava rápido, falava pelos cotovelos e gesticulava o tempo todo, conhecia e era bem quista por todos. E agora isso, essa decomposição em vida, a corrosão da beleza interior e exterior, aquela porcaria havia engolido toda a luz e toda a vontade que vivia nela. Mas não era só isso, não foi apenas ela quem foi sugada, nós todos fomos, sua família, eu, os amigos mais próximos, todos nós estávamos exauridos e perdidos diante de tal situação.
Estacionei o carro em frente casa e carreguei-a para dentro entre socos, gritos e choro.
Às vezes tinha vontade de arrebentá-la ao meio, bater até que ela desistisse disso, mas não era assim que as coisas funcionavam e na realidade eu não queria machucá-la ainda mais, só queria que pudesse compreender, visse e reconhecesse a nova pessoa que surgiu de dentro dela.
Deitei-a na cama e tirei suas roupas sujas, enquanto ela chorava e praguejava contra tudo e todos. As roupas estavam imundas e fediam a lixo ou algo podre, os tênis estavam cheios de barro que já estava quase seco, não imaginava aonde ela tinha passado esses dois dias.
Separei uma muda de roupas limpas, levei-a até o banheiro, liguei o chuveiro e provei a temperatura da água.
- Não quero tomar banho – protestou.
- Eu não queria uma namorada drogada.
- Então me deixa ir, não preciso de você, não quero você – gritava.
Parecia mais consciente agora.
- Alice – gritei – fecha essa boca antes que eu perca o controle e sente a mão em você. Eu te deixaria se não fosse tarde demais, se você não tivesse destruído a vida de todos.
Sua boca estava semi-aberta e os olhos fixos em mim, e minhas mãos apertavam seus braços.
- Você não precisa de mim? Devia ter dito isso antes, eu te deixaria chapada naquele lugar imundo para que alguém te estuprasse ou te matasse.
- Você não sabe de nada, não se meta nisso – replicou.
- Eu estou metido nisso até o pescoço – gritei chacoalhando-a – você meteu todos nós nisso e todos estão definhando junto com esse lixo que você se transformou.
Joguei-a para frente do espelho.
- Olha bem, presta bem atenção no teu estado, parece uma mendiga imunda- segurei-a em frente o espelho por algum tempo.
Seus olhos umedeceram e então ela caiu em um pranto assustador, mas isso já era corriqueiro.
Chorou por horas, soluçou até cansar e pegar no sono. Fiquei ali, sentado a seu lado mexendo em seu cabelo macio, pensando em todas as crises dos últimos seis meses, no estado que ela se encontrava, pensando em desistir daquela confusão toda, mas seria impossível.
Ela parecia tão calma agora, respirava sem dificuldade, o rosto tinha cor outra vez, olhando assim dava até para esquecer todo o sofrimento que ela havia causado. No entanto quando ela acordasse o caos recomeçaria e ninguém poderia fazer nada, pois de uma forma ou de outra ela escaparia, desapareceria por alguns dias. Tudo outra vez.
Coloquei as roupas dela na máquina de lavar, fiz um café, fui para sala e assisti TV até dormir.
Acordei com o sol no rosto, pensei em Alice lá no quarto, dava calafrios imaginar o que teria de enfrentar quando ela acordasse. Fui até lá para vê-la, mas ela não estava na cama. Chamei por ela e nada, olhei na cozinha, no outro quarto, no quintal, na sacada onde ela gostava de ficar, mas nem sinal dela. O portão da frente ainda estava trancado, minhas chaves estavam no lugar e o carro na garagem, mas ela havia sumido. Chamei por ela outra vez e outra vez não respondeu.
Procurei em todo o lugar. Não, não procurei, faltava o banheiro dos fundos, corri até lá na esperança de encontrá-la. E encontrei.
O corpo pendia de um fio de luz amarrado na janela do banheiro, seu rosto estava roxo assim como as mãos mínimas e os pés. Algo brutal tomou conta de mim, do meu peito nasceu um grito que mais parecia um urro. Tirei-a de lá, tentei ressuscitá-la, mas ela já não respondia mais.
Morreu em um banheiro frio e praticamente abandonado, como já havia acontecido seis meses atrás quando cravou uma agulha em seu braço em outro banheiro qualquer.
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Boo!
Corri jardim adentro sabendo q ele estava lá me esperando, as garrafas de cerveja se chocavam durante a corrida, o tilintar delas faziam com que eu lembrasse o seu gosto gelado, garganta abaixo.
Abri a porta dos fundos, guardei a cerveja na geladeira e o chamei:
- Richard!
- Oi – respondeu.
- Eu trouxe a cerveja.
Ouvi sua risada e seus passos no segundo andar.
- Quantas?
- Doze!
- Quem mais vem?
- Ninguém, só nós dois.
- Pra que tanto?
- Pra gente morrer.
Nós rimos e lá em cima ele derrubou algo.
Estávamos em uma casa antiga, com janelas francesas e cortinas escuras. Às vezes eu não sabia como íamos parar em lugares como aquele, sempre tão antigos, tão arquitetonicamente ricos e eu me deliciava com toda história escondida em seus pilares.
Andei até a biblioteca, respirei fundo. O cheiro dos livros antigos encheu meus pulmões. Sentia a textura das páginas amarelas e rolava a naftalina entre os dedos quando inalava aquele ar. Ar familiar.
- O quê você está fazendo? – Richard gritou.
- Já subo.
Respondi com os olhos ainda fechados para não perder aquela sensação nostálgica. Nostalgia do que não foi, do que eu não vivi, nem senti, mas era meu quando eu respirava.
Fechei as portas da biblioteca e andei pelo corredor apertado e milhões de sussurros vazavam das paredes, como se elas quisessem me contar o que aconteceu, como se eu quisesse saber. E eu queria, parei e tentei ouvir. O som cessou. Tentei ouvir mais vezes, mas elas desistiram de contar.
Passei pela sala ampla, desliguei a TV e andei até a escada. As vozes sussurravam quando eu não pretendia ouvi-las.
Antes de subir olhei em volta, a luz que entrava pelas janelas era incrível, aquele avermelhado do fim da tarde fazia tudo ganhar movimento e Richard dava o som. Não sei que diabos ele estava fazendo, mas de minuto em minuto derrubava algo no chão de madeira grossa.
- Vem rápido – ele gritou.
E eu corri, parecia urgente, devia ser besteira, mas eu sempre acreditava quando a voz dele soava desesperada.
Na metade da escada algo me segurou, eu puxei, minha perna parecia presa.
-Merda- bradei, procurando nos degraus algo que me prendesse.
Nada nos degraus. Eu puxei a perna e ela continuava presa, forcei tentando subir e senti algo prender nela com mais força. O pânico começou a subir pelo estômago e a voz ficou embargada na garganta, atrás de mim não havia nada, mas no reflexo na televisão havia.
O contorno perfeito de um corpo prendia meu calcanhar e eu esperneei feito louca, as mãos presas no corrimão, mas a voz não saia.
“Não, você não vai. Saia da minha casa” as vozes diziam isso cada vez mais alto.
-Richard, Richard - o grito saiu abafado pelo desespero.
Ouvi ele correr e em menos de dois segundos estava na escada, perto de mim.
Pegou meu braço e puxou-me para cima, enquanto aquilo me puxava para baixo e repetia incansavelmente para que saísse dali.
Segurei o braço de Richard com as duas mãos cravando fundo as unhas nele. A força sob meu calcanhar cedeu e eu praticamente voei para cima e ele me segurou com uma força surpreendente, como jamais havia segurado antes. Afundei o rosto na curva de seu pescoço me perguntando o que havia acontecido.
- O que foi isso? – perguntou em estado de alerta, girando o corpo para monitorar as coisas ao nosso redor.
- Eu não sei.
Tinha até medo de olhar em volta, não sabia o que veria, não queria abrir os olhos, mas me afastei e olhei. Nada diferente. Janelas francesas, cortinas escuras, luz avermelhada.
Ouvia um zunido ainda, como se dez pessoas falassem ao mesmo tempo, tampei os ouvidos com força. Richard andava de um lado para outro, olhando atrás dos móveis quando um vaso de porcelana voou em sua direção. Surreal.
Com a mão ele protegeu o rosto e os estilhaços voaram pela sala inteira. Corri até ele, peguei sua mão ensangüentada e o arrastei até o banheiro. Coloquei-a debaixo d’água e tirei cuidadosamente os cacos que pontilhavam sua mão.
Eu estava apavorada, ele quase catatônico, não respondia quando eu perguntava e quanto maior o silêncio maior o meu pavor.
- Segura – disse enrolando uma toalha em sua mão.
- Eu não entendo – ele disse.
- Eu também não, mas eu sei o que eu vi e quero sair daqui agora.
E nós andamos o mais rápido possível para fora da casa, deixando para trás a cerveja, as janelas francesas e o pôr-do-sol .
Abri a porta dos fundos, guardei a cerveja na geladeira e o chamei:
- Richard!
- Oi – respondeu.
- Eu trouxe a cerveja.
Ouvi sua risada e seus passos no segundo andar.
- Quantas?
- Doze!
- Quem mais vem?
- Ninguém, só nós dois.
- Pra que tanto?
- Pra gente morrer.
Nós rimos e lá em cima ele derrubou algo.
Estávamos em uma casa antiga, com janelas francesas e cortinas escuras. Às vezes eu não sabia como íamos parar em lugares como aquele, sempre tão antigos, tão arquitetonicamente ricos e eu me deliciava com toda história escondida em seus pilares.
Andei até a biblioteca, respirei fundo. O cheiro dos livros antigos encheu meus pulmões. Sentia a textura das páginas amarelas e rolava a naftalina entre os dedos quando inalava aquele ar. Ar familiar.
- O quê você está fazendo? – Richard gritou.
- Já subo.
Respondi com os olhos ainda fechados para não perder aquela sensação nostálgica. Nostalgia do que não foi, do que eu não vivi, nem senti, mas era meu quando eu respirava.
Fechei as portas da biblioteca e andei pelo corredor apertado e milhões de sussurros vazavam das paredes, como se elas quisessem me contar o que aconteceu, como se eu quisesse saber. E eu queria, parei e tentei ouvir. O som cessou. Tentei ouvir mais vezes, mas elas desistiram de contar.
Passei pela sala ampla, desliguei a TV e andei até a escada. As vozes sussurravam quando eu não pretendia ouvi-las.
Antes de subir olhei em volta, a luz que entrava pelas janelas era incrível, aquele avermelhado do fim da tarde fazia tudo ganhar movimento e Richard dava o som. Não sei que diabos ele estava fazendo, mas de minuto em minuto derrubava algo no chão de madeira grossa.
- Vem rápido – ele gritou.
E eu corri, parecia urgente, devia ser besteira, mas eu sempre acreditava quando a voz dele soava desesperada.
Na metade da escada algo me segurou, eu puxei, minha perna parecia presa.
-Merda- bradei, procurando nos degraus algo que me prendesse.
Nada nos degraus. Eu puxei a perna e ela continuava presa, forcei tentando subir e senti algo prender nela com mais força. O pânico começou a subir pelo estômago e a voz ficou embargada na garganta, atrás de mim não havia nada, mas no reflexo na televisão havia.
O contorno perfeito de um corpo prendia meu calcanhar e eu esperneei feito louca, as mãos presas no corrimão, mas a voz não saia.
“Não, você não vai. Saia da minha casa” as vozes diziam isso cada vez mais alto.
-Richard, Richard - o grito saiu abafado pelo desespero.
Ouvi ele correr e em menos de dois segundos estava na escada, perto de mim.
Pegou meu braço e puxou-me para cima, enquanto aquilo me puxava para baixo e repetia incansavelmente para que saísse dali.
Segurei o braço de Richard com as duas mãos cravando fundo as unhas nele. A força sob meu calcanhar cedeu e eu praticamente voei para cima e ele me segurou com uma força surpreendente, como jamais havia segurado antes. Afundei o rosto na curva de seu pescoço me perguntando o que havia acontecido.
- O que foi isso? – perguntou em estado de alerta, girando o corpo para monitorar as coisas ao nosso redor.
- Eu não sei.
Tinha até medo de olhar em volta, não sabia o que veria, não queria abrir os olhos, mas me afastei e olhei. Nada diferente. Janelas francesas, cortinas escuras, luz avermelhada.
Ouvia um zunido ainda, como se dez pessoas falassem ao mesmo tempo, tampei os ouvidos com força. Richard andava de um lado para outro, olhando atrás dos móveis quando um vaso de porcelana voou em sua direção. Surreal.
Com a mão ele protegeu o rosto e os estilhaços voaram pela sala inteira. Corri até ele, peguei sua mão ensangüentada e o arrastei até o banheiro. Coloquei-a debaixo d’água e tirei cuidadosamente os cacos que pontilhavam sua mão.
Eu estava apavorada, ele quase catatônico, não respondia quando eu perguntava e quanto maior o silêncio maior o meu pavor.
- Segura – disse enrolando uma toalha em sua mão.
- Eu não entendo – ele disse.
- Eu também não, mas eu sei o que eu vi e quero sair daqui agora.
E nós andamos o mais rápido possível para fora da casa, deixando para trás a cerveja, as janelas francesas e o pôr-do-sol .
domingo, 27 de junho de 2010
A curva - por Louis
Estava muito frio para continuar andando pela casa, o outono apareceu com cara de inverno esse ano, aquela chuva fina e terrível fazia tudo ficar cinza e sem vida. Só pessoas como Françoise, que vêem a vida em preto e branco, achariam aquela noite agradável.
Ela ficou acordada até tarde e toda vez que movia algo eu despertava de um sonho estranho, ai me acomodava novamente e pegava no sono. Falando em sonho estranho, toda noite era a mesma coisa eu sonhava com um cara gritando: Já era, Louis, já era. O lugar era desconhecido e comum ao mesmo tempo, parecia minha casa, mas era cercado de árvores e depois de gritar comigo ele corria, agarrava meu pescoço e eu não conseguia me mover, ficava cada vez mais sufocado, suave frio e acordava com os braços pequenos de Françoise ao meu redor, tentando me arrancar do pesadelo. Ela sempre perguntava a mesma coisa e eu contava o mesmo sonho.
Se dizia preocupada, os olhos grandes me sondando, procurando medo em mim até eu rir e dizer que era só um sonho para que ela se sentisse aliviada. Então, deitava em meu peito e adormecia, enquanto eu ficava com os olhos arregalados, olhando para o teto, tentando entender aquilo tudo. Por que toda noite o mesmo sonho?
- Louis, vou ligar a luz. Rapidinho!
- Tá!
Ela não precisava saber de todas as minhas preocupações, não agora. Permaneci de olhos fechados até que ela apagasse a luz e deitasse. Pulou por cima de mim, quase não pesava de tão pequena que era, veio para baixo das cobertas, bebeu a costumeira xícara de chá e grudou o corpo gelado no meu.
Sempre fazia a mesma coisa quando deitava, uma mão ia para baixo do travesseiro, com a outra pegava minha mãe esquerda e colocava sobre sua cintura, puxando-me para junto de seu corpo, para que eu a esquentasse.
Demorei umas duas horas para dormir, Françoise não parava de se mexer e parecia ofegante algumas vezes. A última vez que a vi acordar, se debateu como se eu a estivesse matando, segurei-a com mais força até se acalmar e dormi.
- Louis, Louis!
Ah, não é possível, filha da puta. Não vai me deixar dormir hoje.
- O quê?
Eu queria tanto dormir, mas ela não vai mais calar a boca agora.
- Tem gente aqui dentro.
DESGRAÇA, DESGRAÇA.
- Claro que tem, nós somos gente. Dorme, Françoise.
Garota miserável, alucinando a essa hora madrugada. Virei para o lado, queria dormir mesmo, precisava, mas pelo jeito não seria hoje.
- É sério, Louis. Ouve!
Dois minutos depois a chave da porta da frente giro lentamente, fazendo aquele barulho inconfundível.
- Ouviu? Perguntei a ela, já sentado na cama.
- Claro que ouvi, não te acordei por acordar. Tem gente aqui dentro.
Levantei devagar para não fazer barulho e Françoise veio atrás, o corpo tremulo quase grudado ao meu.
- A arma! Onde está a arma? Sussurrei a ela.
Pegou a arma no fundo falso da gaveta, não sei se tinha o controle, pois seus olhos estavam cheios d’água e suas mãos trêmulas. Apesar disso, sua mira era boa, tinha feito aula de tiro há algum tempo.
Abria a porta do quarto e então, nós andamos no escuro até chegarmos à sala.
A porta estava entre aberta, deixando à mostra a silhueta do miserável. Era alto, maior que eu, talvez. Acendi a luz.
- Quieto ai! Ordenei.
O que ele estava fazendo aqui àquela hora?
-Pierre?!
- Sim.
Respondeu sorrindo, um sorriso descarado.
- Como você entrou aqui?
- Com a minha chave.
Disse Françoise e em um repente de loucura, andou até ele com a arma abaixada.
- O quê?
Não conseguia processar o que estava acontecendo. A mão de Pierre enroscou na cintura dela, puxando a para perto e dentro de mim uma raiva desumana explodiu, fazendo-me correr em sua direção.
A arma disparou, direto no meu peito. Quente demais como se suturasse no mesmo instante em que abria o ferimento.
Meus olhos quase fechados ainda puderam ver seus olhos grandes e o rosto infantil sobre mim.
- Isso é tudo, Louis.
Sua voz fraca aos meus ouvidos e essa frase trouxe a lembrança. Ela havia dito isso uns dois anos atrás quando estávamos no banheiro do meu quarto, ela penteava os cabelos escuros com a minha escova e eu a observava. Então ela disse: “minhas roupas ocupam metade do seu armário, meus cabelos estão na sua escova e meu cheiro está na sua cama. Acho que deveríamos morar juntos. Isso é tudo, Louis”.
Meus olhos ficaram embaçados, minhas forças se esvaindo e não senti mais nada, nem o amor que nutri por ela durante todo esse tempo.
Ela ficou acordada até tarde e toda vez que movia algo eu despertava de um sonho estranho, ai me acomodava novamente e pegava no sono. Falando em sonho estranho, toda noite era a mesma coisa eu sonhava com um cara gritando: Já era, Louis, já era. O lugar era desconhecido e comum ao mesmo tempo, parecia minha casa, mas era cercado de árvores e depois de gritar comigo ele corria, agarrava meu pescoço e eu não conseguia me mover, ficava cada vez mais sufocado, suave frio e acordava com os braços pequenos de Françoise ao meu redor, tentando me arrancar do pesadelo. Ela sempre perguntava a mesma coisa e eu contava o mesmo sonho.
Se dizia preocupada, os olhos grandes me sondando, procurando medo em mim até eu rir e dizer que era só um sonho para que ela se sentisse aliviada. Então, deitava em meu peito e adormecia, enquanto eu ficava com os olhos arregalados, olhando para o teto, tentando entender aquilo tudo. Por que toda noite o mesmo sonho?
- Louis, vou ligar a luz. Rapidinho!
- Tá!
Ela não precisava saber de todas as minhas preocupações, não agora. Permaneci de olhos fechados até que ela apagasse a luz e deitasse. Pulou por cima de mim, quase não pesava de tão pequena que era, veio para baixo das cobertas, bebeu a costumeira xícara de chá e grudou o corpo gelado no meu.
Sempre fazia a mesma coisa quando deitava, uma mão ia para baixo do travesseiro, com a outra pegava minha mãe esquerda e colocava sobre sua cintura, puxando-me para junto de seu corpo, para que eu a esquentasse.
Demorei umas duas horas para dormir, Françoise não parava de se mexer e parecia ofegante algumas vezes. A última vez que a vi acordar, se debateu como se eu a estivesse matando, segurei-a com mais força até se acalmar e dormi.
- Louis, Louis!
Ah, não é possível, filha da puta. Não vai me deixar dormir hoje.
- O quê?
Eu queria tanto dormir, mas ela não vai mais calar a boca agora.
- Tem gente aqui dentro.
DESGRAÇA, DESGRAÇA.
- Claro que tem, nós somos gente. Dorme, Françoise.
Garota miserável, alucinando a essa hora madrugada. Virei para o lado, queria dormir mesmo, precisava, mas pelo jeito não seria hoje.
- É sério, Louis. Ouve!
Dois minutos depois a chave da porta da frente giro lentamente, fazendo aquele barulho inconfundível.
- Ouviu? Perguntei a ela, já sentado na cama.
- Claro que ouvi, não te acordei por acordar. Tem gente aqui dentro.
Levantei devagar para não fazer barulho e Françoise veio atrás, o corpo tremulo quase grudado ao meu.
- A arma! Onde está a arma? Sussurrei a ela.
Pegou a arma no fundo falso da gaveta, não sei se tinha o controle, pois seus olhos estavam cheios d’água e suas mãos trêmulas. Apesar disso, sua mira era boa, tinha feito aula de tiro há algum tempo.
Abria a porta do quarto e então, nós andamos no escuro até chegarmos à sala.
A porta estava entre aberta, deixando à mostra a silhueta do miserável. Era alto, maior que eu, talvez. Acendi a luz.
- Quieto ai! Ordenei.
O que ele estava fazendo aqui àquela hora?
-Pierre?!
- Sim.
Respondeu sorrindo, um sorriso descarado.
- Como você entrou aqui?
- Com a minha chave.
Disse Françoise e em um repente de loucura, andou até ele com a arma abaixada.
- O quê?
Não conseguia processar o que estava acontecendo. A mão de Pierre enroscou na cintura dela, puxando a para perto e dentro de mim uma raiva desumana explodiu, fazendo-me correr em sua direção.
A arma disparou, direto no meu peito. Quente demais como se suturasse no mesmo instante em que abria o ferimento.
Meus olhos quase fechados ainda puderam ver seus olhos grandes e o rosto infantil sobre mim.
- Isso é tudo, Louis.
Sua voz fraca aos meus ouvidos e essa frase trouxe a lembrança. Ela havia dito isso uns dois anos atrás quando estávamos no banheiro do meu quarto, ela penteava os cabelos escuros com a minha escova e eu a observava. Então ela disse: “minhas roupas ocupam metade do seu armário, meus cabelos estão na sua escova e meu cheiro está na sua cama. Acho que deveríamos morar juntos. Isso é tudo, Louis”.
Meus olhos ficaram embaçados, minhas forças se esvaindo e não senti mais nada, nem o amor que nutri por ela durante todo esse tempo.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
A curva.
Em uma madrugada muito fria de outono, a garoa fina deixava tudo mais gelado na rua e pela janela ela admirava as gotículas d’água rodando com o vento. Lá fora alguém andava rápido sob um guarda-chuva e atrás do vidro ela imagina como a cama estaria quente e quão bom seria sentir o chá quente descendo garganta abaixo, enquanto se afundava nos travesseiros.
Uma rajada de vento entrou pelo vão da janela, seus ombros encolherem, esfregou as mão e fechou a cortina deixando as gotículas flutuantes para trás. Bebeu o chá, já embaixo das cobertas e sentiu o conformo morno se espalhando pelo corpo, pousou a cabeça no travesseiro, encaixou seu corpo ao dele que dormia há alguém tempo. Adormeceu.
Sonhou que derrubava talheres repetidamente, não conseguia mantê-los firmes em suas mãos, andava de um lado para o outro na cozinha e todo movimento que fazia algo ia ao chão. Acordou.
- Sonho estranho - pensou enquanto tirava o braço dele de cima de seu peito.
Estava acomodada novamente quando algo metálico caiu na cozinha.
- Talheres!
Sentou na cama, os olhos atentos e o coração batendo cada vez mais rápido.
Ouviu passos hesitantes pelo corredor, a luz da cozinha foi acesa e apagada rapidamente
- Louis! Louis!
Sacudiu seus ombros.
- O quê? Perguntou sonolento.
- Tem gente aqui dentro.
- Claro que tem, nós somos gente. Dorme, Françoise.
Virou para o outro lado ignorando-a.
- É sério, Louis, ouve!
A chave girou lentamente na porta da frente, Louis pulou da cama.
- Ouviu?
- Claro que ouvi, não te acordei por acordar. Tem gente aqui dentro.
Estavam agitados, se moviam rápido, mas cuidadosamente dentro do cômodo, olhavam-se espantados sem saber o que fazer.
- A arma! Onde está a arma? Perguntou Louis.
Françoise pegou a arma no fundo falso da gaveta, suas mãos estavam tremulas, nos olhos escuros lágrimas se acumulavam embaçando sua visão.
- Eu vou na frente, você fica atrás de mim com a arma, seja lá o que for, se vier em nossa direção você atira.
Abriu a porta do quarto tentando não fazer barulho, Françoise suspirou como quem toma coragem, mantinha a arma na altura do nariz, cano apontando para o teto, as mãos ainda tremulas. Andou praticamente grudada em Louis pelo corredor escuro, as batidas de seus corações eram audíveis.
Entraram na sala e pararam, só o tórax se movia freneticamente.
Perto da porta estava o homem dando impressão de que estava de saída.
Louis acendeu a luz.
- Quieto aí!
O homem se virou e encarou o casal.
- Pierre?
- Sim. Disse Pierre com um sorriso nos lábios.
- Como você entrou aqui? Perguntou Louis.
- Com a minha chave. Françoise respondeu caminhando até Pierre.
- O quê?!
Louis indagou incrédulo, a boca e as idéias em curva.
No quinto andar o menino adentra o quarto dos pais e pergunta assustado:
- Isso foi um tiro?
Uma rajada de vento entrou pelo vão da janela, seus ombros encolherem, esfregou as mão e fechou a cortina deixando as gotículas flutuantes para trás. Bebeu o chá, já embaixo das cobertas e sentiu o conformo morno se espalhando pelo corpo, pousou a cabeça no travesseiro, encaixou seu corpo ao dele que dormia há alguém tempo. Adormeceu.
Sonhou que derrubava talheres repetidamente, não conseguia mantê-los firmes em suas mãos, andava de um lado para o outro na cozinha e todo movimento que fazia algo ia ao chão. Acordou.
- Sonho estranho - pensou enquanto tirava o braço dele de cima de seu peito.
Estava acomodada novamente quando algo metálico caiu na cozinha.
- Talheres!
Sentou na cama, os olhos atentos e o coração batendo cada vez mais rápido.
Ouviu passos hesitantes pelo corredor, a luz da cozinha foi acesa e apagada rapidamente
- Louis! Louis!
Sacudiu seus ombros.
- O quê? Perguntou sonolento.
- Tem gente aqui dentro.
- Claro que tem, nós somos gente. Dorme, Françoise.
Virou para o outro lado ignorando-a.
- É sério, Louis, ouve!
A chave girou lentamente na porta da frente, Louis pulou da cama.
- Ouviu?
- Claro que ouvi, não te acordei por acordar. Tem gente aqui dentro.
Estavam agitados, se moviam rápido, mas cuidadosamente dentro do cômodo, olhavam-se espantados sem saber o que fazer.
- A arma! Onde está a arma? Perguntou Louis.
Françoise pegou a arma no fundo falso da gaveta, suas mãos estavam tremulas, nos olhos escuros lágrimas se acumulavam embaçando sua visão.
- Eu vou na frente, você fica atrás de mim com a arma, seja lá o que for, se vier em nossa direção você atira.
Abriu a porta do quarto tentando não fazer barulho, Françoise suspirou como quem toma coragem, mantinha a arma na altura do nariz, cano apontando para o teto, as mãos ainda tremulas. Andou praticamente grudada em Louis pelo corredor escuro, as batidas de seus corações eram audíveis.
Entraram na sala e pararam, só o tórax se movia freneticamente.
Perto da porta estava o homem dando impressão de que estava de saída.
Louis acendeu a luz.
- Quieto aí!
O homem se virou e encarou o casal.
- Pierre?
- Sim. Disse Pierre com um sorriso nos lábios.
- Como você entrou aqui? Perguntou Louis.
- Com a minha chave. Françoise respondeu caminhando até Pierre.
- O quê?!
Louis indagou incrédulo, a boca e as idéias em curva.
No quinto andar o menino adentra o quarto dos pais e pergunta assustado:
- Isso foi um tiro?
segunda-feira, 3 de maio de 2010
Racinha!
E que fique registrada a minha indignação com o mundo e com as pessoas. Não é de hoje que eu não gosto de humanos, uma espécie que se autodestrói não merece ser tratada com alguma pompa. Ninguém é herói, santo ou missionário por completo, existe em cada um uma semente de mal que faz a destruição, a tristeza e o sofrimento virarem prazer e se deleitam ao ouvir as desgraças alheias
Não desviem água dos reservatórios, nem inundem meia Amazônia, não apodreçam os oceanos com petróleo, nem matem pássaros, peixes, anfíbios. Matem a si próprios, extingui-se a raça e se da por acabada a destruição, dois coelhos numa cajadada só.
Simples, prático, fácil de fazer.
Não desviem água dos reservatórios, nem inundem meia Amazônia, não apodreçam os oceanos com petróleo, nem matem pássaros, peixes, anfíbios. Matem a si próprios, extingui-se a raça e se da por acabada a destruição, dois coelhos numa cajadada só.
Simples, prático, fácil de fazer.
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Fusão
Quando pensava nele ria e chorava, às vezes simultaneamente. Queria correr, juntar, abraçar e salvar, salvá-lo de si próprio que sazonalmente se autodestruía.
Via-o como um edifício desses litorâneos planejados mal e parcamente, podendo vir abaixo a qualquer momento por ter areia demais em cada um dos seus vinte andares.
Ela era o oposto, uma casa na planície com ciclopes profundos, mais de dez metros talvez. Abalável, mas nem tanto, precisava de um tornado ou um terremoto fortíssimo, enquanto
ele seria posto abaixo por qualquer abalo sísmico mínimo que fosse.
Invejavam um ao outro quando se observavam. A imponência dos vinte andares a fazia querer subir até lá e permanecer junto dele, no ar. A força das estruturas dela o fazia querer descer, talvez desmoronar para juntar-se a ela.
Uma manhã dessas um barulho abrasador acordou a todos. Uma cortina de fumaça se ergueu embaçando a visão e fazendo com que todos cobrissem os olhos.
- Olha lá! O edifício caiu sobre a casinha.
Estavam errados. Não foi um desmoronamento, um tombo ou uma queda, foi apenas a fusão entre fraco e forte!
Via-o como um edifício desses litorâneos planejados mal e parcamente, podendo vir abaixo a qualquer momento por ter areia demais em cada um dos seus vinte andares.
Ela era o oposto, uma casa na planície com ciclopes profundos, mais de dez metros talvez. Abalável, mas nem tanto, precisava de um tornado ou um terremoto fortíssimo, enquanto
ele seria posto abaixo por qualquer abalo sísmico mínimo que fosse.
Invejavam um ao outro quando se observavam. A imponência dos vinte andares a fazia querer subir até lá e permanecer junto dele, no ar. A força das estruturas dela o fazia querer descer, talvez desmoronar para juntar-se a ela.
Uma manhã dessas um barulho abrasador acordou a todos. Uma cortina de fumaça se ergueu embaçando a visão e fazendo com que todos cobrissem os olhos.
- Olha lá! O edifício caiu sobre a casinha.
Estavam errados. Não foi um desmoronamento, um tombo ou uma queda, foi apenas a fusão entre fraco e forte!
segunda-feira, 5 de abril de 2010
Reticências
No ônibus, voltando do trabalho com a cabeça cansada, tentando não pensar em nada para que os miolos não fervessem, pensei nele, justamente ele que faz meu cérebro inteiro entrar em ebulição.
Há mais de dois anos eu não o vejo, mas toda vez que nos falamos algo fica inacabado, a casca da ferida sempre solta e sangra, às vezes mais, outras vezes menos, depende do quão magoados estamos, de quantas vezes no dia pensamos sobre nós, quantas vezes no dia sentimos a ausência gritante que causamos um na vida do outro.
É sempre assim, a gente se machuca e se não se machuca sente falta. Falta da dor, falta do nó na garganta, sente falta da impotência diante da situação e falta de sentir a distância corroendo algo que nunca será corroído.
Se eu soubesse como as coisas seriam antes de tudo acontecer, eu teria dito não, teria mostrado como aquilo era errado e ele entenderia, ele sempre entende o que eu tenho a dizer, talvez porque sinta a mesma impotência, a mesma dor, a mesma falta.
Nossa vida tornou-se um novelo felpudo do qual não se pode sair, é um novelo quilométrico, que provavelmente tem suas extremidades atadas para que não possamos nos desvencilhar dele.
E a fuga durará para sempre? Nada é para sempre, não deve haver uma exceção, essa não deve ser a exceção. Tem de haver no mundo uma saída, um ponto de fuga, um bode expiatório para nossa dor.
O ônibus fez uma curva brusca, acho que quase bateu em algo, não sei. Minha cabeça bateu contra o vidro da janela, derrubando o fone do meu ouvido e fazendo desaparecer como fumaça o rosto dele da minha cabeça.
Mas nada é para sempre, a caixa do ônibus rangeu quando o motorista passou a marcha, o som me desligou e seu rosto voltou feito fumaça.
Antigamente, as coisas eram boas para nós, não havia obrigações, só precisávamos viver, agora ele não tem mais vontade, nem por ele nem por mim, o que magoa. Eu viveria por ele, morreria também, mas viver é muito mais difícil, para viver você tem que abrir mão de coisas, morrer não requer isso, você só morre e as coisas ficam. Problemas, contas, amores mal resolvidos, tristezas terrenas, a vida fica e com ela todas as complicações que vêm anexadas a nossa existência.
Ele não abriria mão, não é injustiça minha, é a verdade, foi ele quem disse, pois tem medo, é mais seguro viver provincialmente, sem ter de se acostumar as outras coisas e pessoas. Esse tipo de coisa faz com que eu pense, questione e fique indignada comigo mesma por nutrir esses sentimentos, por pensar em largar tudo por alguém que não largaria a saia comprida da avó por mim.
Se ele ouvisse meus pensamentos estaria ferido agora, que fira, pois verdade seja dita,a vida para mim não é vida para ele, o meu novelo interminável é um rolo de linha de cinco metros com pontas arrebentadas para ele.
O telefone tocou no fundo da bolsa e eu a revirei por alguns segundos até encontrá-lo.
- Oi
- Você está chegando?
- Estou no ônibus, levo meia hora para chegar ainda.
- Ah sim, deixei pizza, eu estou indo embora já.
- Tudo bem, brigada.
- Até, eu te amo.
- Até, eu também.
Não era em meu namorado que eu pensava e era tão hipócrita responder assim a quem não se sente o mesmo amor, me sentia suja por alimentar algo que não existe, pelo menos para mim.
Ele dormia comigo, acordava ao meu lado, fazia coisas o dia todo junto a mim, mas não existia, não aqui dentro, onde só havia a ebulição causada pelos sentimentos antigos que eu sentia pelo outro.
O outro que me fez mudar sem que eu sentisse e protestasse, sem que brigasse pelo que eu era. Mudança que me tornou fraca quando ele 'sumiu', mudança que arrebentou minhas convenções e fez com que o mundo tivesse outro significado, um significado fraco, feio e cinza.
A vida toda eu tinha sido algo dentro de um cubo de gelo que ele fez derreter, mas que eu consegui reconstruir, só que agora não é tão forte, parece que qualquer elevação de temperatura pode fazer com que o real apareça, com que a vida volte a ser fraca, feia e cinza.
As coisas mudaram, nós trocamos de papel, eu me tornei mais vulnerável e ele tomou de mim a força que existia e se congelou, agora só nós sabemos o caminho do congelamento e do degelo, o congelamento dos meus sentimentos e o degelo da fraqueza que ele sempre demonstrou, enquanto eu resolvia nossas vidas e brigava com os contras da nossa permanência.
- Moça, é aqui que você desce, não? Falou cobrador cutucando meu ombro.
- É sim, estava distraída. Levantei e fui saindo.
- Brigada. Gritei lá da porta.
O ônibus foi e eu fiquei estática na rua, pensando em não entrar em casa, não entrar com contato com ele, não ver seu rosto na minha home page. E mais, não queria ficar sozinha, pois se ficasse veria fotos antigas, ouviria músicas tristes e meu cérebro ferveria por conta de coisas sem solução, coisas passadas.
O passado era uma constante na minha vida, não tinha como escapar, porque era sempre a parte mais perfeita dela, a parte mais feliz, mas eu não tenho certeza que tenha sido assim, às vezes creio que essa idealização seja coisa minha, coisa imaginária mesmo, sempre parece tão bom quando me lembro das sensações, dos gostos, cheiro, da ingenuidade daquele tempo.
Agora a gente perdeu isso, não há mais um felicidade ideal, vamos morrer tentando achar copias nossas em outras pessoas, quando o mais sensato a se fazer é desistir do 'nunca mais' e voltarmos a ser duas pessoas em uma só.
Entrei em casa e o telefone tocou, corri e olhei no identificador de chamadas, era ele, o passado, querendo vir a tona em menos de cinco segundos dentro de casa.
Não o atendi, ele não sofreria por isso, não sabia que eu estava ali, mas eu sabia e uma ponta de arrependimento surgiu, como uma interrogação no meio da frase. No entanto, não me interessava o que ele queria, porque de certa forma eu sabia que aquele contato seria mais um sangramento da ferida antiga, no momento que eu atendesse e ouvisse seu sotaque arrastado o sangue jorraria e os dias seguintes seriam ensanguentados por um sangue desnecessário, que poderia ser evitado. E eu evitei...
Há mais de dois anos eu não o vejo, mas toda vez que nos falamos algo fica inacabado, a casca da ferida sempre solta e sangra, às vezes mais, outras vezes menos, depende do quão magoados estamos, de quantas vezes no dia pensamos sobre nós, quantas vezes no dia sentimos a ausência gritante que causamos um na vida do outro.
É sempre assim, a gente se machuca e se não se machuca sente falta. Falta da dor, falta do nó na garganta, sente falta da impotência diante da situação e falta de sentir a distância corroendo algo que nunca será corroído.
Se eu soubesse como as coisas seriam antes de tudo acontecer, eu teria dito não, teria mostrado como aquilo era errado e ele entenderia, ele sempre entende o que eu tenho a dizer, talvez porque sinta a mesma impotência, a mesma dor, a mesma falta.
Nossa vida tornou-se um novelo felpudo do qual não se pode sair, é um novelo quilométrico, que provavelmente tem suas extremidades atadas para que não possamos nos desvencilhar dele.
E a fuga durará para sempre? Nada é para sempre, não deve haver uma exceção, essa não deve ser a exceção. Tem de haver no mundo uma saída, um ponto de fuga, um bode expiatório para nossa dor.
O ônibus fez uma curva brusca, acho que quase bateu em algo, não sei. Minha cabeça bateu contra o vidro da janela, derrubando o fone do meu ouvido e fazendo desaparecer como fumaça o rosto dele da minha cabeça.
Mas nada é para sempre, a caixa do ônibus rangeu quando o motorista passou a marcha, o som me desligou e seu rosto voltou feito fumaça.
Antigamente, as coisas eram boas para nós, não havia obrigações, só precisávamos viver, agora ele não tem mais vontade, nem por ele nem por mim, o que magoa. Eu viveria por ele, morreria também, mas viver é muito mais difícil, para viver você tem que abrir mão de coisas, morrer não requer isso, você só morre e as coisas ficam. Problemas, contas, amores mal resolvidos, tristezas terrenas, a vida fica e com ela todas as complicações que vêm anexadas a nossa existência.
Ele não abriria mão, não é injustiça minha, é a verdade, foi ele quem disse, pois tem medo, é mais seguro viver provincialmente, sem ter de se acostumar as outras coisas e pessoas. Esse tipo de coisa faz com que eu pense, questione e fique indignada comigo mesma por nutrir esses sentimentos, por pensar em largar tudo por alguém que não largaria a saia comprida da avó por mim.
Se ele ouvisse meus pensamentos estaria ferido agora, que fira, pois verdade seja dita,a vida para mim não é vida para ele, o meu novelo interminável é um rolo de linha de cinco metros com pontas arrebentadas para ele.
O telefone tocou no fundo da bolsa e eu a revirei por alguns segundos até encontrá-lo.
- Oi
- Você está chegando?
- Estou no ônibus, levo meia hora para chegar ainda.
- Ah sim, deixei pizza, eu estou indo embora já.
- Tudo bem, brigada.
- Até, eu te amo.
- Até, eu também.
Não era em meu namorado que eu pensava e era tão hipócrita responder assim a quem não se sente o mesmo amor, me sentia suja por alimentar algo que não existe, pelo menos para mim.
Ele dormia comigo, acordava ao meu lado, fazia coisas o dia todo junto a mim, mas não existia, não aqui dentro, onde só havia a ebulição causada pelos sentimentos antigos que eu sentia pelo outro.
O outro que me fez mudar sem que eu sentisse e protestasse, sem que brigasse pelo que eu era. Mudança que me tornou fraca quando ele 'sumiu', mudança que arrebentou minhas convenções e fez com que o mundo tivesse outro significado, um significado fraco, feio e cinza.
A vida toda eu tinha sido algo dentro de um cubo de gelo que ele fez derreter, mas que eu consegui reconstruir, só que agora não é tão forte, parece que qualquer elevação de temperatura pode fazer com que o real apareça, com que a vida volte a ser fraca, feia e cinza.
As coisas mudaram, nós trocamos de papel, eu me tornei mais vulnerável e ele tomou de mim a força que existia e se congelou, agora só nós sabemos o caminho do congelamento e do degelo, o congelamento dos meus sentimentos e o degelo da fraqueza que ele sempre demonstrou, enquanto eu resolvia nossas vidas e brigava com os contras da nossa permanência.
- Moça, é aqui que você desce, não? Falou cobrador cutucando meu ombro.
- É sim, estava distraída. Levantei e fui saindo.
- Brigada. Gritei lá da porta.
O ônibus foi e eu fiquei estática na rua, pensando em não entrar em casa, não entrar com contato com ele, não ver seu rosto na minha home page. E mais, não queria ficar sozinha, pois se ficasse veria fotos antigas, ouviria músicas tristes e meu cérebro ferveria por conta de coisas sem solução, coisas passadas.
O passado era uma constante na minha vida, não tinha como escapar, porque era sempre a parte mais perfeita dela, a parte mais feliz, mas eu não tenho certeza que tenha sido assim, às vezes creio que essa idealização seja coisa minha, coisa imaginária mesmo, sempre parece tão bom quando me lembro das sensações, dos gostos, cheiro, da ingenuidade daquele tempo.
Agora a gente perdeu isso, não há mais um felicidade ideal, vamos morrer tentando achar copias nossas em outras pessoas, quando o mais sensato a se fazer é desistir do 'nunca mais' e voltarmos a ser duas pessoas em uma só.
Entrei em casa e o telefone tocou, corri e olhei no identificador de chamadas, era ele, o passado, querendo vir a tona em menos de cinco segundos dentro de casa.
Não o atendi, ele não sofreria por isso, não sabia que eu estava ali, mas eu sabia e uma ponta de arrependimento surgiu, como uma interrogação no meio da frase. No entanto, não me interessava o que ele queria, porque de certa forma eu sabia que aquele contato seria mais um sangramento da ferida antiga, no momento que eu atendesse e ouvisse seu sotaque arrastado o sangue jorraria e os dias seguintes seriam ensanguentados por um sangue desnecessário, que poderia ser evitado. E eu evitei...
segunda-feira, 29 de março de 2010
Bilhetes - Final
Atrás de mim vinha um homem de roupa escura, pequeno - 1,65m no máximo – sua pele era característica, parecia um pescador após um banho de sol.
Não liguei para ele, continuei andando, aí os passos ficaram mais próximos. Quanto mais alto ficava o som dos passos dele, mais rápidos ficavam os meus passos. Estava quase correndo e pensei ‘puta merda’ quando o suco de uva caiu no vestido claro.
O cara gritou alguma coisa atrás de mim, não olhei, continuei correndo, aí ele gritou de novo:
- Hey menina, para!
Eu parei, foi burrice, mas eu parei. Não adiantaria correr, hora ou outra ele me alcançaria.
- Fala – disse a ele.
- Eu conheço você, estava junto daquele cara de cabelo cacheado, lá na praia, quando ele pegou meu bilhete.
Era ele o cara do bilhete, um pescador com o capuz do moletom tampando a metade da testa em pleno verão.
- Sim, eu estava com ele – respondi.
Deu dois passos na minha direção, seu rosto ficou próximo ao meu, seus olhos claros ficaram vivos por um instante, enquanto me encarava.
De repente sua mão agarrou meu pescoço com força para impedir o fluxo de ar.
- Aquele cara ta me perseguindo, não quero vocês no meu caminho, entendeu?
Eu me debatia e tentava empurrá-lo, mas o desgraçado era forte, forte mesmo.
- Não quero vocês por perto, não quero que ele pegue meus recados, não são para ele – sua fala era colérica, grunhia entre dentes.
Acumulei o pouco de razão que me restava e enfiei meus polegares nos seus olhos e empurrei com toda a minha força, então ele me soltou.
- Vadia – gritou levando as mãos ao rosto.
Eu corri, corri o máximo que pude até chegar à praia, estava a mais ou menos uma quadra de lá.
Dava para ouvir o barulho do mar misturado com o som alto dos passos do homem correndo atrás de mim. Cheguei a esquina beira-mar e atravessei a avenida vazia, onde estavam as pessoas?
O cara gritou de novo e quando olhei para o lado vi Camilo andando no calçadão.
- Camilo – gritei, mas ele não ouviu.
Gritei mais uma vez e novamente ele não olhou em minha direção.
- Para, sua vadia – o cara gritava atrás de mim.
Devia estar a menos de 3 metros.
- Camilo – berrei tão alto que meus pulmões doeram.
Camilo olhou no mesmo instante em que o cara me puxou pelos cabelos.
Eu cai e bati a cabeça, mas a areia amorteceu a queda, o cara montou em cima de mim, feito um bicho.
- Sai de cima de mim, asqueroso.
Gritava e estapeava seu rosto, enquanto ele tentava, inutilmente, segurar meus braços.
- Eu vou matar o teu amigo e vou te matar também se não calar essa boca.
Camilo corria areia adentro, eu não conseguia gritar para que parasse, pois as mãos do homem estavam mais uma vez ao redor do meu pescoço.
- Larga ela – gritou Camilo – Larga, eu disse para largar.
O cara gemeu com chute que levou nas costelas e rolou para o lado.
- Foge Camilo, foge.
Eu gritava, mas ele não ouvia, estava em cima do homem esmurrando sua cara.
- Ele que te matar, corre.
Ele não ouvi, só batia no cara. Parecia cego, seu rosto estava vermelho, como se todo o sangue tivesse subido para suas bochechas e ele batia sem parar.
Eu vi quando o homem levou a mão no bolso e me joguei em cima deles e senti algo arder na minha pele.
- Não – gritou Camilo.
Deu outro soco no cara que arrancou a faca da minha barriga e doeu mais. Sangrava muito, minha mão fazia pressão sobre o corte, enquanto os dois lutavam.
Eu gritei por socorro, mas na havia ninguém por perto, Camilo quase rosnava e um som arrebatador pulou de sua garganta quando a faca do homem entrou embaixo de suas costelas.
Ele caiu de joelhos e mais uma vez a faca entro em seu abdômen fazendo jorrar sangue dos ferimentos, ele enfiou inúmeras vezes a faca em Camilo.
Eu fazia força para me erguer, mas doía toda vez que eu forçava para levantar. Camilo gritou de dor mais uma vez e um ódio tomou conta de mim, não sei como, nem porque meu corpo se lançou sobre o homem. Mordi seu braço com toda a força até meus dentes doerem, mas ele era mais forte.
Jogou-me sobre o corpo de Camilo e eu senti a faca perfurar minha pele, rasgar meus músculos, parecia tocar meu órgãos, a dor paralisava e toda vez que a faca furava um tremor de dor corria minha espinha.
O rosto do homem, deformado pelos socos de Camilo, foi a última coisa que eu vi. Minha visão foi escurecendo a medita que o ar em meus pulmões se esvaia.
Camilo gemeu e o homem grunhiu movendo-se para ele, suponho que tenha lhe dado outra facada, pois o senti movendo-se embaixo de mim e ouvi seu suspirar. Suspirou como quem desiste de algo
As cores do céu foram sumindo num degrade de azul claro ao preto. Foi aí que a vida acabou, eu acho.
Não liguei para ele, continuei andando, aí os passos ficaram mais próximos. Quanto mais alto ficava o som dos passos dele, mais rápidos ficavam os meus passos. Estava quase correndo e pensei ‘puta merda’ quando o suco de uva caiu no vestido claro.
O cara gritou alguma coisa atrás de mim, não olhei, continuei correndo, aí ele gritou de novo:
- Hey menina, para!
Eu parei, foi burrice, mas eu parei. Não adiantaria correr, hora ou outra ele me alcançaria.
- Fala – disse a ele.
- Eu conheço você, estava junto daquele cara de cabelo cacheado, lá na praia, quando ele pegou meu bilhete.
Era ele o cara do bilhete, um pescador com o capuz do moletom tampando a metade da testa em pleno verão.
- Sim, eu estava com ele – respondi.
Deu dois passos na minha direção, seu rosto ficou próximo ao meu, seus olhos claros ficaram vivos por um instante, enquanto me encarava.
De repente sua mão agarrou meu pescoço com força para impedir o fluxo de ar.
- Aquele cara ta me perseguindo, não quero vocês no meu caminho, entendeu?
Eu me debatia e tentava empurrá-lo, mas o desgraçado era forte, forte mesmo.
- Não quero vocês por perto, não quero que ele pegue meus recados, não são para ele – sua fala era colérica, grunhia entre dentes.
Acumulei o pouco de razão que me restava e enfiei meus polegares nos seus olhos e empurrei com toda a minha força, então ele me soltou.
- Vadia – gritou levando as mãos ao rosto.
Eu corri, corri o máximo que pude até chegar à praia, estava a mais ou menos uma quadra de lá.
Dava para ouvir o barulho do mar misturado com o som alto dos passos do homem correndo atrás de mim. Cheguei a esquina beira-mar e atravessei a avenida vazia, onde estavam as pessoas?
O cara gritou de novo e quando olhei para o lado vi Camilo andando no calçadão.
- Camilo – gritei, mas ele não ouviu.
Gritei mais uma vez e novamente ele não olhou em minha direção.
- Para, sua vadia – o cara gritava atrás de mim.
Devia estar a menos de 3 metros.
- Camilo – berrei tão alto que meus pulmões doeram.
Camilo olhou no mesmo instante em que o cara me puxou pelos cabelos.
Eu cai e bati a cabeça, mas a areia amorteceu a queda, o cara montou em cima de mim, feito um bicho.
- Sai de cima de mim, asqueroso.
Gritava e estapeava seu rosto, enquanto ele tentava, inutilmente, segurar meus braços.
- Eu vou matar o teu amigo e vou te matar também se não calar essa boca.
Camilo corria areia adentro, eu não conseguia gritar para que parasse, pois as mãos do homem estavam mais uma vez ao redor do meu pescoço.
- Larga ela – gritou Camilo – Larga, eu disse para largar.
O cara gemeu com chute que levou nas costelas e rolou para o lado.
- Foge Camilo, foge.
Eu gritava, mas ele não ouvia, estava em cima do homem esmurrando sua cara.
- Ele que te matar, corre.
Ele não ouvi, só batia no cara. Parecia cego, seu rosto estava vermelho, como se todo o sangue tivesse subido para suas bochechas e ele batia sem parar.
Eu vi quando o homem levou a mão no bolso e me joguei em cima deles e senti algo arder na minha pele.
- Não – gritou Camilo.
Deu outro soco no cara que arrancou a faca da minha barriga e doeu mais. Sangrava muito, minha mão fazia pressão sobre o corte, enquanto os dois lutavam.
Eu gritei por socorro, mas na havia ninguém por perto, Camilo quase rosnava e um som arrebatador pulou de sua garganta quando a faca do homem entrou embaixo de suas costelas.
Ele caiu de joelhos e mais uma vez a faca entro em seu abdômen fazendo jorrar sangue dos ferimentos, ele enfiou inúmeras vezes a faca em Camilo.
Eu fazia força para me erguer, mas doía toda vez que eu forçava para levantar. Camilo gritou de dor mais uma vez e um ódio tomou conta de mim, não sei como, nem porque meu corpo se lançou sobre o homem. Mordi seu braço com toda a força até meus dentes doerem, mas ele era mais forte.
Jogou-me sobre o corpo de Camilo e eu senti a faca perfurar minha pele, rasgar meus músculos, parecia tocar meu órgãos, a dor paralisava e toda vez que a faca furava um tremor de dor corria minha espinha.
O rosto do homem, deformado pelos socos de Camilo, foi a última coisa que eu vi. Minha visão foi escurecendo a medita que o ar em meus pulmões se esvaia.
Camilo gemeu e o homem grunhiu movendo-se para ele, suponho que tenha lhe dado outra facada, pois o senti movendo-se embaixo de mim e ouvi seu suspirar. Suspirou como quem desiste de algo
As cores do céu foram sumindo num degrade de azul claro ao preto. Foi aí que a vida acabou, eu acho.
segunda-feira, 22 de março de 2010
Bilhetes - continuação.
- Eu não to bêbada!
- Mas parece – riu.
- Muito espirituoso! Pode ir dormir agora – empurrei-o pra fora - Obrigada pela carona – sorri.
- Disponha – riu também - Até amanhã.
- Até.
Nem o vi entrando em casa, nem minha porta abrindo, parecia um zumbi enquanto andava até o quarto. Cai na cama e capotei.
O calor do meio-dia me acordou, mas eu continuei na cama esperando que a preguiça fosse embora. Havia movimento dentro de casa, na TV a mulher do telejornal noticiava uma desgraça, na cozinha o barulho das panelas e do abre e fecha da geladeira, meu pai conversando com alguém na sala e gritando para minha mãe que estava na cozinha “NÃO COLOCA MAIS KNORR, NÃO COLOCA MAIS KNORR!”, depois voltava a resmungar com a pessoa perto dele.
Lá fora o portão bateu com força e minha mãe gritou “QUEBRAAA”, e quem entrou quase corria, pois seus passos eram audíveis.
- Bárbara já acordou? – perguntou Camilo
- Nãããão – gritei.
- Respondido – disse minha mãe rindo – Pode entrar, ela está no quarto.
Nos conhecíamos há anos, não havia problemas em ficarmos sozinhos no quarto, pelos menos para os meus pais não havia.
- Achei outro – disse histérico.
- Vai se danar – sentei na cama – Não acredito que você foi procurar outro.
- Eu não procurei, estava passando lá e encontrei.
Mentia tão mal para um padre juvenil, precisava aperfeiçoar isso, pois padres mentem bem.
- Mentira!
- Tá é mentira – disse.
Claro que é mentira, quando mentia um luminoso ficava piscando em sua testa “MENTIRA, MENTIRA, MENTIRA”.
Fiquei olhando esperando que falasse algo ou lesse aquilo de uma vez por todas.
- Tá – gritei – Tá esperando o quê?
Pulou com meu grito e tirou outro papel amarelo do bolso.
- É chegada num amarelo a criatura, hein?!
- Se você não fizer observações, eu conto – já começou a se ofender por conta de um pedaço de papel e tinta azul.
- Bueno! Não vou falar mais - emudeci.
- Eu fui à praia pensando em ficar espiando até alguém aparecer para que eu pudesse descobrir ...
- Ahhh Zeeeeusss, tu tá louco? Vai se meter com quem tu nem conhece, o que tu tem na cabeça?
Me censurou com um olhar e não falou por alguns segundos.
- Não falo mais, pode continuar – disse impaciente.
- Então, como eu ia dizendo, fui até lá descobrir quem era a pessoa, mas o bilhete já estava no lugar, aí eu peguei-o e esperei alguém aparecer e nada, e já que ninguém apareceu reivindicando seu bilhete, eu corri para lê-lo pra ti.
- Lê, então!
- É assim:
“ A vitalidade foi embora, penetrou o oceano dentro de uma garrafa de vidro”.
- Hm?
- Só!
- Nossa! Terra a vista, Camilo. Descobriu a luz elétrica depois dessa.
Inacreditável como ele achava aquilo interessante e como levava a sério aquela pasmaceira de bilhete amarelo com mensagens sem nexo algum.
- Hmm!
- Para de falar “hum”, isso irrita.
- Desculpa, mas quer que eu diga o que?
- Sei lá!
- Hummm – ri.
- Besta – riu também.
- Vai continuar com isso?
- Tô curioso, queria ao menos ver quem é a pessoa.
NÃO ACREDITO. NÃO DÁ PRA ACREDITAR.
- Mas pra quê?
Precisava fingir que aquilo era normal, mas Camilo era mentalmente retardado.
- Eu não sei Bárbara, eu quero.
- Ah, sim. Vai lá então.
Ele não ia desistir mesmo que fosse e fizesse o que achava certo, eu não era mãe de ninguém. Talvez a mãe dele soubesse, por mim, mas seria para o bem dele porque, sem dúvida ele estava fazendo algo perigoso.
- Você vai contar, não é?
Não precisava nem esconder mais, ele tinha consciência.
- Uhum, eu vou.
- Por quê? – esbravejou.
- Porque isso está errado, porque é perigoso.
- Tudo é perigoso pra ti, até uma poça d’água é perigosa.
- O que tem a ver a poça d’água?
- Nada.
- Ah, muito claro.
Ele devia estar enlouquecendo, agora ele passava a não fazer sentido. Ficou agitado, andando no quarto, meio que rondando minha cama com aquele pedaço de papel na mão.
- Vem comigo amanhã?
- Que?
- Amanhã eu vou voltar lá às 8 horas, vem junto comigo?
- Não, Camilo.
- Por quê?
- Porque eu não sou burra.
Ele nem falou, saiu do meu quarto, respondeu algo a minha mãe e foi embora. Eu não iria à mesma praia que ele hoje, não queria conversar sobre isso, mas e amanhã o que eu vou fazer, deixá-lo sozinho?! Segui-lo, é isso que eu farei.
A situação fica cada vez mais estranha. Seguir Camilo que segue outra pessoa, eu sou perseguidora do perseguidor.
Se ele descobrir vou ter sermão para um ano inteiro e se ele virar padre – é mais deboche meu do que realidade - vou ter penitências até a morte.
O dia passou arrastado e eu fui dormir mais cedo para chegar logo no outro dia, planejei fazer um caminho diferente para entrar na praia na direção contraria de Camilo e provavelmente a direção em que o cara – ou a mulher - do bilhete viria.
Sete horas eu estava de pé e tomei meu rumo, as ruas estavam vazias, só o que se ouvia eram os pássaros e o vento nas árvores, entrei em uma padaria que estava aberta comprei um suco de uva e andei até a praia.
Na minha frente ia uma mulher loira, cabelo cheio de cachos com um vestido branco. Pensei que poderia ser ela, mas porra, que clichê. Só faltava ela correr na praia com os olhos cheios de lágrimas sofrendo por um amor perdido. B-O-B-A-G-E-M.
Antes de chegar à praia a mulher entrou em um prédio, não era ela, ainda bem, pois seria ridículo, eu riria de Camilo por ter seguido aquele clichê ambulante.
Uma família saia de casa com cadeiras e guarda-sol para tostar no sol da manhã.
E eu seguia caminhando, bebendo meu suco de uva, cantarolando às vezes
Ouvi alguém andando atrás de mim, cheguei a pensar que pudesse ser Camilo tentando me pegar, mas não era[...]
[ continua ]
- Mas parece – riu.
- Muito espirituoso! Pode ir dormir agora – empurrei-o pra fora - Obrigada pela carona – sorri.
- Disponha – riu também - Até amanhã.
- Até.
Nem o vi entrando em casa, nem minha porta abrindo, parecia um zumbi enquanto andava até o quarto. Cai na cama e capotei.
O calor do meio-dia me acordou, mas eu continuei na cama esperando que a preguiça fosse embora. Havia movimento dentro de casa, na TV a mulher do telejornal noticiava uma desgraça, na cozinha o barulho das panelas e do abre e fecha da geladeira, meu pai conversando com alguém na sala e gritando para minha mãe que estava na cozinha “NÃO COLOCA MAIS KNORR, NÃO COLOCA MAIS KNORR!”, depois voltava a resmungar com a pessoa perto dele.
Lá fora o portão bateu com força e minha mãe gritou “QUEBRAAA”, e quem entrou quase corria, pois seus passos eram audíveis.
- Bárbara já acordou? – perguntou Camilo
- Nãããão – gritei.
- Respondido – disse minha mãe rindo – Pode entrar, ela está no quarto.
Nos conhecíamos há anos, não havia problemas em ficarmos sozinhos no quarto, pelos menos para os meus pais não havia.
- Achei outro – disse histérico.
- Vai se danar – sentei na cama – Não acredito que você foi procurar outro.
- Eu não procurei, estava passando lá e encontrei.
Mentia tão mal para um padre juvenil, precisava aperfeiçoar isso, pois padres mentem bem.
- Mentira!
- Tá é mentira – disse.
Claro que é mentira, quando mentia um luminoso ficava piscando em sua testa “MENTIRA, MENTIRA, MENTIRA”.
Fiquei olhando esperando que falasse algo ou lesse aquilo de uma vez por todas.
- Tá – gritei – Tá esperando o quê?
Pulou com meu grito e tirou outro papel amarelo do bolso.
- É chegada num amarelo a criatura, hein?!
- Se você não fizer observações, eu conto – já começou a se ofender por conta de um pedaço de papel e tinta azul.
- Bueno! Não vou falar mais - emudeci.
- Eu fui à praia pensando em ficar espiando até alguém aparecer para que eu pudesse descobrir ...
- Ahhh Zeeeeusss, tu tá louco? Vai se meter com quem tu nem conhece, o que tu tem na cabeça?
Me censurou com um olhar e não falou por alguns segundos.
- Não falo mais, pode continuar – disse impaciente.
- Então, como eu ia dizendo, fui até lá descobrir quem era a pessoa, mas o bilhete já estava no lugar, aí eu peguei-o e esperei alguém aparecer e nada, e já que ninguém apareceu reivindicando seu bilhete, eu corri para lê-lo pra ti.
- Lê, então!
- É assim:
“ A vitalidade foi embora, penetrou o oceano dentro de uma garrafa de vidro”.
- Hm?
- Só!
- Nossa! Terra a vista, Camilo. Descobriu a luz elétrica depois dessa.
Inacreditável como ele achava aquilo interessante e como levava a sério aquela pasmaceira de bilhete amarelo com mensagens sem nexo algum.
- Hmm!
- Para de falar “hum”, isso irrita.
- Desculpa, mas quer que eu diga o que?
- Sei lá!
- Hummm – ri.
- Besta – riu também.
- Vai continuar com isso?
- Tô curioso, queria ao menos ver quem é a pessoa.
NÃO ACREDITO. NÃO DÁ PRA ACREDITAR.
- Mas pra quê?
Precisava fingir que aquilo era normal, mas Camilo era mentalmente retardado.
- Eu não sei Bárbara, eu quero.
- Ah, sim. Vai lá então.
Ele não ia desistir mesmo que fosse e fizesse o que achava certo, eu não era mãe de ninguém. Talvez a mãe dele soubesse, por mim, mas seria para o bem dele porque, sem dúvida ele estava fazendo algo perigoso.
- Você vai contar, não é?
Não precisava nem esconder mais, ele tinha consciência.
- Uhum, eu vou.
- Por quê? – esbravejou.
- Porque isso está errado, porque é perigoso.
- Tudo é perigoso pra ti, até uma poça d’água é perigosa.
- O que tem a ver a poça d’água?
- Nada.
- Ah, muito claro.
Ele devia estar enlouquecendo, agora ele passava a não fazer sentido. Ficou agitado, andando no quarto, meio que rondando minha cama com aquele pedaço de papel na mão.
- Vem comigo amanhã?
- Que?
- Amanhã eu vou voltar lá às 8 horas, vem junto comigo?
- Não, Camilo.
- Por quê?
- Porque eu não sou burra.
Ele nem falou, saiu do meu quarto, respondeu algo a minha mãe e foi embora. Eu não iria à mesma praia que ele hoje, não queria conversar sobre isso, mas e amanhã o que eu vou fazer, deixá-lo sozinho?! Segui-lo, é isso que eu farei.
A situação fica cada vez mais estranha. Seguir Camilo que segue outra pessoa, eu sou perseguidora do perseguidor.
Se ele descobrir vou ter sermão para um ano inteiro e se ele virar padre – é mais deboche meu do que realidade - vou ter penitências até a morte.
O dia passou arrastado e eu fui dormir mais cedo para chegar logo no outro dia, planejei fazer um caminho diferente para entrar na praia na direção contraria de Camilo e provavelmente a direção em que o cara – ou a mulher - do bilhete viria.
Sete horas eu estava de pé e tomei meu rumo, as ruas estavam vazias, só o que se ouvia eram os pássaros e o vento nas árvores, entrei em uma padaria que estava aberta comprei um suco de uva e andei até a praia.
Na minha frente ia uma mulher loira, cabelo cheio de cachos com um vestido branco. Pensei que poderia ser ela, mas porra, que clichê. Só faltava ela correr na praia com os olhos cheios de lágrimas sofrendo por um amor perdido. B-O-B-A-G-E-M.
Antes de chegar à praia a mulher entrou em um prédio, não era ela, ainda bem, pois seria ridículo, eu riria de Camilo por ter seguido aquele clichê ambulante.
Uma família saia de casa com cadeiras e guarda-sol para tostar no sol da manhã.
E eu seguia caminhando, bebendo meu suco de uva, cantarolando às vezes
Ouvi alguém andando atrás de mim, cheguei a pensar que pudesse ser Camilo tentando me pegar, mas não era[...]
[ continua ]
segunda-feira, 15 de março de 2010
Bilhetes
“Eu quero saber o que tem depois do precipício, sem receio algum, com passos firmes eu vou de encontro a ele. A curiosidade assassina me tenta em qualquer estrada.
Eu deixei minha vida escorregar por entre os dedos como um tufão de vento quente que veio do norte, já vi o suficiente. Não existe algo que eu realmente queira fazer agora, pois quando sento aqui na beira do precipício e vejo que as ondas quebram descontroladamente nas pedras, eu tenho a real sensação de que não há mais nada, mais ninguém. Prevalece a vontade de permanecer”.
- E é isso, encontrei esse pedaço de papel na praia – disse.
- Sério? Sem nenhum rastro?
- Sim, nada que indicasse quem tinha deixado ali.
- Porra, Camilo, só acontece coisa estranha nessa tua vida – ri.
- Cala boca, guria – deu um tapa na minha cabeça.
Ficamos sentados na areia esperando que o sol nascesse completamente.
Camilo lia e relia aquele pedaço de papel amarelo, escrito por algum depressivo descompensado.
- Tá tentando decorar isso?
- Não, piadista. Queria descobrir quem escreveu – falava olhando fixo para o papel.
- Coleta as digitais.
- Não entendo como você pode falar tanta besteira, Bárbara. Essa tua cabeça é um poço de imbecilidade – quase berrou de irritação.
- Ooook, tá morta quem falou.
Levantei, tirei o vestido e corri para o mar rindo dele. Só corri para que ele não pudesse ver como era divertido deixá-lo assim.
Camilo poderia ser padre se quisesse, pois toda a sua seriedade com relação as coisas, ao mundo, as pessoas, aos animais era clerical e i-n-s-u-p-o-r-t-á-v-e-l.
- Qual é Bárbara? – gritou correndo atrás de mim.
- Sai, sai! Vai ler teu bilhete misterioso – desprezei-o.
Mergulhei fundo para tentar fugir dele, mas quando voltei à superfície ele estava esperando com uma cara de reprovação.
- Muito bom para alguém que tem medo de tubarões.
- Só tenho medo dos tubarões do Discovery.
Então ele riu, parecia livre quando ria jogando a cabeça pra trás, nem de longe lembrava o Camilo clerical, seu riso era lascivo e seus olhos tornavam-se maliciosos. Quando ele ria nós éramos iguais, dois monstrinhos de pele clara, cabelos escuros e olhos negros de puro escárnio.
- Você está tremendo – disse jogando água nele.
- Não, Babi! Essa água está muito gelada – encolheu-se de frio.
- Ahh, fresco!
Joguei mais água nele e sem que eu pensasse em me defender, lançou-se contra mim e arrastou-me para o fundo.
Eu via as bolhas de ar saindo de minha boca e subindo em espiral até a superfície, enquanto a água invadia meus pulmões. Mas logo seus braços afrouxaram e eu subi junto delas.
- MONSTRO – gritei.
Tossi, cuspindo água e ele me olhava segurando uma gargalhada que se formava em seu peito.
- Idiota! Você é o maior idiota de todo o litoral.
Eu estava muito brava e continuava tossindo, meu nariz ardia e meus olhos lacrimejavam por conta do sal.
- Desculpa – disse quase rindo.
- Acho bom você nem falar comigo, desgraça.
Andei em direção a areia, atravessando as ondas e desviando das algas.
Alcancei meu vestido, o chacoalhei para retirar toda a areia dele e o vesti. Camilo saia do mar com um sorriso cadeado atrás dos lábios.
- Pode rir – disse.
Sua camiseta estava ao meu lado e quando ele estava quase se abaixando para juntá-la, a vontade foi maior que eu e chutei toda a areia possível sobre ela, Camilo parou de andar e me encarou com aquela cara sonsa de reprovação constante e eu sorri para ele.
- Bom dia, Camilo – comecei a andar. Ah! Não esqueça teu bilhete interessantíssimo.
Ele bufou e resmungou alguma coisa enquanto limpava a areia da camisa, eu segui pelo calçadão.
Andei rápido até dobrar a esquina para que não me alcançasse, mas ele era mais rápido e nosso caminho era o mesmo, pois estávamos em casas vizinhas. Duas casas depois da esquina ouvi seus passos atrás de mim, era cedo demais e não havia nenhum barulho além de nossos passos nervosos.
- Owww Barbi, não fiz por mal – rendeu-se atrás de mim.
Não respondi, continuei andando e não olhei trás para saber se estava longe ou perto.
- Não tem porque ficar sem falar comigo. Olha para mim, Bárbara.
Olhei rapidamente para ele, mas não parei.
Então ele correu e me pegou pelo braço.
- Não enche – disse a ele.
Tinha vontade de rir, ele era tão inocente que chegava a doer em mim.
- Era brincadeira.
- Você tem noção de quanto esperma de baleia eu engoli?!
Ele não saberia a resposta.
- Não, é você que assiste Discovery o dia todo.
Encarei-o e talvez parecesse que eu sentia raiva, porque ele recuou dois passos.
- Desculpa?
Desculpava-se como quem comete um crime e deliciava-me o brilho opaco de culpa em seus olhos.
- Tá! Tudo bem – disse. Vamos logo que eu quero dormir.
Caminhamos em silêncio por alguns minutos, até que o sono e o cansaço me pagassem pelas pernas, literalmente.
- Se andar mais devagar eu vou ter que andar para trás pra te acompanhar – disse.
- Eu cansei – a voz mais arrastada que meus pés - me carrega?
- E como se pede?
- Insuportável você – reclamei.
- Ah, certo! Vá andando então.
- Por favor – parecia tão dissimulada e cínica quando fazia o que ele pedia.
Se fossemos letras ele seria maiúscula e eu minúscula, logo poderia fazer minha vontade, e fez. Colocou-me em suas costas, assim como as macacas-mãe fazem com seus filhotes e me carregou rua a fora, até chegarmos ao portão.
- Está entregue – disse colocando-me no chão – consegue abrir a porta?
[ Continua ]
Eu deixei minha vida escorregar por entre os dedos como um tufão de vento quente que veio do norte, já vi o suficiente. Não existe algo que eu realmente queira fazer agora, pois quando sento aqui na beira do precipício e vejo que as ondas quebram descontroladamente nas pedras, eu tenho a real sensação de que não há mais nada, mais ninguém. Prevalece a vontade de permanecer”.
- E é isso, encontrei esse pedaço de papel na praia – disse.
- Sério? Sem nenhum rastro?
- Sim, nada que indicasse quem tinha deixado ali.
- Porra, Camilo, só acontece coisa estranha nessa tua vida – ri.
- Cala boca, guria – deu um tapa na minha cabeça.
Ficamos sentados na areia esperando que o sol nascesse completamente.
Camilo lia e relia aquele pedaço de papel amarelo, escrito por algum depressivo descompensado.
- Tá tentando decorar isso?
- Não, piadista. Queria descobrir quem escreveu – falava olhando fixo para o papel.
- Coleta as digitais.
- Não entendo como você pode falar tanta besteira, Bárbara. Essa tua cabeça é um poço de imbecilidade – quase berrou de irritação.
- Ooook, tá morta quem falou.
Levantei, tirei o vestido e corri para o mar rindo dele. Só corri para que ele não pudesse ver como era divertido deixá-lo assim.
Camilo poderia ser padre se quisesse, pois toda a sua seriedade com relação as coisas, ao mundo, as pessoas, aos animais era clerical e i-n-s-u-p-o-r-t-á-v-e-l.
- Qual é Bárbara? – gritou correndo atrás de mim.
- Sai, sai! Vai ler teu bilhete misterioso – desprezei-o.
Mergulhei fundo para tentar fugir dele, mas quando voltei à superfície ele estava esperando com uma cara de reprovação.
- Muito bom para alguém que tem medo de tubarões.
- Só tenho medo dos tubarões do Discovery.
Então ele riu, parecia livre quando ria jogando a cabeça pra trás, nem de longe lembrava o Camilo clerical, seu riso era lascivo e seus olhos tornavam-se maliciosos. Quando ele ria nós éramos iguais, dois monstrinhos de pele clara, cabelos escuros e olhos negros de puro escárnio.
- Você está tremendo – disse jogando água nele.
- Não, Babi! Essa água está muito gelada – encolheu-se de frio.
- Ahh, fresco!
Joguei mais água nele e sem que eu pensasse em me defender, lançou-se contra mim e arrastou-me para o fundo.
Eu via as bolhas de ar saindo de minha boca e subindo em espiral até a superfície, enquanto a água invadia meus pulmões. Mas logo seus braços afrouxaram e eu subi junto delas.
- MONSTRO – gritei.
Tossi, cuspindo água e ele me olhava segurando uma gargalhada que se formava em seu peito.
- Idiota! Você é o maior idiota de todo o litoral.
Eu estava muito brava e continuava tossindo, meu nariz ardia e meus olhos lacrimejavam por conta do sal.
- Desculpa – disse quase rindo.
- Acho bom você nem falar comigo, desgraça.
Andei em direção a areia, atravessando as ondas e desviando das algas.
Alcancei meu vestido, o chacoalhei para retirar toda a areia dele e o vesti. Camilo saia do mar com um sorriso cadeado atrás dos lábios.
- Pode rir – disse.
Sua camiseta estava ao meu lado e quando ele estava quase se abaixando para juntá-la, a vontade foi maior que eu e chutei toda a areia possível sobre ela, Camilo parou de andar e me encarou com aquela cara sonsa de reprovação constante e eu sorri para ele.
- Bom dia, Camilo – comecei a andar. Ah! Não esqueça teu bilhete interessantíssimo.
Ele bufou e resmungou alguma coisa enquanto limpava a areia da camisa, eu segui pelo calçadão.
Andei rápido até dobrar a esquina para que não me alcançasse, mas ele era mais rápido e nosso caminho era o mesmo, pois estávamos em casas vizinhas. Duas casas depois da esquina ouvi seus passos atrás de mim, era cedo demais e não havia nenhum barulho além de nossos passos nervosos.
- Owww Barbi, não fiz por mal – rendeu-se atrás de mim.
Não respondi, continuei andando e não olhei trás para saber se estava longe ou perto.
- Não tem porque ficar sem falar comigo. Olha para mim, Bárbara.
Olhei rapidamente para ele, mas não parei.
Então ele correu e me pegou pelo braço.
- Não enche – disse a ele.
Tinha vontade de rir, ele era tão inocente que chegava a doer em mim.
- Era brincadeira.
- Você tem noção de quanto esperma de baleia eu engoli?!
Ele não saberia a resposta.
- Não, é você que assiste Discovery o dia todo.
Encarei-o e talvez parecesse que eu sentia raiva, porque ele recuou dois passos.
- Desculpa?
Desculpava-se como quem comete um crime e deliciava-me o brilho opaco de culpa em seus olhos.
- Tá! Tudo bem – disse. Vamos logo que eu quero dormir.
Caminhamos em silêncio por alguns minutos, até que o sono e o cansaço me pagassem pelas pernas, literalmente.
- Se andar mais devagar eu vou ter que andar para trás pra te acompanhar – disse.
- Eu cansei – a voz mais arrastada que meus pés - me carrega?
- E como se pede?
- Insuportável você – reclamei.
- Ah, certo! Vá andando então.
- Por favor – parecia tão dissimulada e cínica quando fazia o que ele pedia.
Se fossemos letras ele seria maiúscula e eu minúscula, logo poderia fazer minha vontade, e fez. Colocou-me em suas costas, assim como as macacas-mãe fazem com seus filhotes e me carregou rua a fora, até chegarmos ao portão.
- Está entregue – disse colocando-me no chão – consegue abrir a porta?
[ Continua ]
segunda-feira, 8 de março de 2010
Ao leitor imaginário (ou sem dedos)
Eu prefiro que não tenha dedos, não é um agouro, absolutamente
Antes não tenha dedos do que seja alucinação minha, pois eu alucino o tempo todo e frequência e repetição me enjoam.
Leitores com dedos, comentem.
Leitores sem dedos, tentem a língua ou os dedos de outra pessoa!
PS.aos sem dedos: espero que tua perda não tenha sido de uma forma dolorosa. Se foi, sinto muito!
Antes não tenha dedos do que seja alucinação minha, pois eu alucino o tempo todo e frequência e repetição me enjoam.
Leitores com dedos, comentem.
Leitores sem dedos, tentem a língua ou os dedos de outra pessoa!
PS.aos sem dedos: espero que tua perda não tenha sido de uma forma dolorosa. Se foi, sinto muito!
segunda-feira, 1 de março de 2010
Dentro de Você - Fim!
- Eu tinha aonde me apoiar antes – uma lágrima escorreu solitária por meu rosto.
Lucas não tinha mais o que dizer e o silêncio se fez presente mais uma vez.
O vento ficava mais forte com o entardecer e o frio mais intenso, meu queixo batia e eu tremia com o ar gélido.
- Estou com frio –disse.
- Quer ir agora? – perguntou Lucas.
- Não quero deixá-lo aqui – uma máscara de dor tomava meu rosto toda vez que eu pensava em abandoná-lo naquele cemitério.
- Uma hora você vai ter que ir.
- Eu sei. Vamos ficar mais uns minutos. Quero deixar velas para ele, logo vai escurecer.
Levantei e fui em direção a seu túmulo. Lucas seguiu-me.
Tirei da bolsa dois sacos de velas e acendi todas ao lado de seu túmulo aonde o vento não chegava para apagá-las.
- Não vai ficar tão escuro agora, amor – falei olhando seu túmulo.
- Medroso – disse Lucas.
Repreendi com um olhar e ele sorriu tristemente.
Nós deixamos o cemitério quando a luz do dia já tinha partido e a relutância dos meus sentidos deixou-me estagnada ao portão.
- Vou ficar – disse chorando.
- Amanhã a gente volta.
- Promete?
- Prometo – abraçou-me e praticamente me carregou até o carro.
Meu quarto era tão vazio sem os barulhos constantes que ele fazia e sua risada infantil, não fiquei no quarto por muito tempo, lá dentro a ausência se fazia maior.
Comi duas colheradas de uma sopa ruim e fiquei até às quatro horas da manhã no sofá olhando para os miniburacos no teto branco, contando e recontando tentando formar figuras ligando um ao outro e quando as retas formaram um L resolvi levantar-me e ir para cama.
Vesti um travesseiro com a camisa que ele havia esquecido ali, afundei meu rosto nele para que todo o perfume entrasse por minhas narinas e chorei baixinho até entrar no estágio de quase sono.
Foi aí que eu senti uma esperança surgindo dentro de mim, uma luz vindo lá do outro lado da galáxia.
- Bibs – ouvi.
Só uma pessoa no mundo me chamava assim e essa pessoa havia morrido.
- Levi? Perguntei sentando na cama.
Precisei de alguns segundos para minha visão acostumar-se com o breu total e não havia nada lá dentro além de móveis e roupas espalhadas. Acendi o abajur, olhei em volta e nada, bom, eu deveria estar delirando.
Levantei e fui até a cozinha pegar um copo d’água e em minha geladeira ainda estava colado seu bilhete carinhosamente debochado: “Fui comprar sorvete. Não chore, eu volto logo”. E embaixo dele eu havia escrito “eu sobrevivo”. Que irônico ler isso agora, não sei quanto mais eu sobreviverei, esperar que ele voltasse do mercado, do trabalho ou da sorveteria era fácil, mas agora ele não voltaria e eu não sabia como agir diante dessa falta desesperadora.
Retornei ao quarto envolta em todos esses pensamentos, abracei o travesseiro onde estava sua camisa e fiquei pensando em como sobreviver, por quem e porquê seguir. Eu não tinha razões para seguir, queria ficar no passado, vivê-lo novamente, não queria uma vida e um mundo onde Levi não existisse e mais uma vez eu chorei por incontáveis minutos afogando-me em soluços desesperados e grunhidos de dor.
Nenhuma perda na minha vida inteira se comparava a essa, nenhuma dor poderia ser maior, eu estava tão sufocada e tão desesperada que não respondia mais por mim, gritava com o rosto enfiado no travesseiro, suplicava para que voltasse, para que fizesse parar, para dizer que iria ficar e nunca mais partiria.
Nada aconteceu, foi tudo em vão e aquela desgraça corroia-me por dentro, como se fosse ácido sulfúrico.
Minhas forças estavam se esvaindo e eu fiquei encolhida e imóvel apenas sentido as lágrimas caírem dos meus olhos e molharem o travesseiro até a exaustão me nocautear e pregar meus olhos.
Na manhã seguinte o toque alto do telefone despertou-me e por um segundo imaginei que fosse Levi para me desejar um bom dia e me fazer ter certeza de que tudo aquilo tinha sido um pesadelo, mas a realidade se fez presente.
- Alô?
- Oi Rô! Sou eu, Lucas.
- Ah, claro.
- Liguei para saber como você está – disse.
- Viva, infelizmente.
- Não fala assim, você vai conseguir.
- Não quero falar sobre isso.
- Ok, você quer voltar lá hoje? – perguntou.
- Sim – assenti.
Duas horas depois Lucas chegou para voltarmos ao cemitério.
- Quero ir sozinha – disse a ele quando chegamos ao portão.
- Tá, eu espero no carro.
Andei até seu tumulo segurando o choro que se amontoava em minha garganta.
Sentei em cima do tumulo com as pernas cruzadas e olhei por algum tempo a foto sobre o epitáfio.
- Oi – disse a ele que jazia lá no fundo. - Espero que não seja tão ruim aí, senti-me feliz ontem quando ouvi tua voz me chamando, queria ter ido junto, não quero ficar aqui sozinha, tenho medo do mundo sem você.
As palavras saiam salgadas com as lágrimas que escorriam face a baixo.
- Ah, desculpa por ter dito aquelas coisas ao padre ontem, eu sei que te chateia a minha descrença, mas eu espero do fundo do meu coração que você tenha encontrado o teu céu e que nele haja todos aqueles anjos bonitos que descrevem os livros.
Fiquei sentada lá mais de uma hora e até o resultado dos jogos e os recados dos amigos eu contei a ele entre uma crise de choro e outra, então resolvi que era hora de voltar, acendi outro pacote de velas e voltei para o carro lutando contra a insanidade que queria que meus pés girassem e voltassem para ficar com ele.
Os dias que se passaram foram longos como anos, toda amanhã eu ia até o cemitério e conversava com ele, as vezes voltava escondida a tarde e pulava a grade lateral se o portão estivesse trancado, precisava conversar com ele, pois eu não tinha mais ninguém que pudesse compreender a dor que arruinava meu ser.
Quando voltava do cemitério vestia suas roupas que estavam na minha casa e borrifava seu perfume nos cômodos e com o chegar da noite as coisas se complicavam, às 20 horas quando ele deveria chegar do trabalho não havia barulho de chaves na minha porta, nem músicas assoviadas vindo do começo do corredor e o silêncio que se instalava dentro de casa era aterrador.
Antes de dormir eu conversava com as paredes imaginando que ele pudesse me escutar, pedia que voltasse ou que me levasse junto e mais uma vez chorava incontrolavelmente até que o sono me derrubasse, levando-me para mais uma madrugada desesperadora de pesadelos terríveis.
No décimo dia após sua morte acordei aturdida em razão de algum pesadelo repetido. Eram sete horas da manhã, cedo demais para Lucas vir me buscar, então resolvi ir sozinha até o cemitério.
Caminhei por quase duas horas para chegar até lá, o portão já estava aberto e minhas pernas sabiam qual caminho deveriam seguir.
- Oi Levi – minha garganta ainda tinha aquele nó que não se desfazia por nada.
Sentei-me em seu túmulo e ali permaneci quieta por um tempo, não tinha muito a dizer a ele essa manhã. Girava sua aliança em meu dedo quando o ouvi novamente.
- Bibs – chamava.
- Aqui! Disse levantando e olhando ao redor.
Seria possível encontrá-lo? Daria minha vida por isso.
Caminhei por entre túmulos procurando por ele enquanto sua voz ressoava em minha cabeça.
Agora eu corria por entre túmulos e jazigos atrás de um rastro que fosse e mais uma vez sua voz me surpreendeu.
- Escute – disse.
Minhas pernas travaram bruscamente e eu fiquei imóvel.
- Onde você está? Por favor, Levi, apareça e leve-me com você. Por favor.
Não respondia minha perguntas, apenas repetia.
- Escute, preciso que escute.
Foi o que eu fiz, detive-me ao som que vinha de algum lugar e quando estava completamente atenta ele disse:
- Dentro de você está a razão para continuar, dentro de você.
E foi só, não havia mais som algum no cemitério e aquelas palavras ficaram martelando na minha cabeça enquanto eu andava feito uma louca até a saída.
Passei pelo vigia repetindo as palavras que tinha escutado, elas não faziam sentido para mim.
Caminhei por ruas ermas até chegar à avenida, minhas pernas iam sozinhas enquanto minha mente continuava imersa em suas palavras.
Não vi de qual lado o carro veio, só ouvi o som dos pneus freando no asfalto e depois escuridão total.
Vi Levi sorrindo e repetindo as palavras que havia dito no cemitério, não podia tocá-lo, mas sabia que estava ali comigo.
- Moça, moça – uma voz carregou-me para longe de Levi.
Meus olhos abriram e eu reconheci aquele lugar. A emergência do hospital.
Tentei erguer-me, mas uma enfermeira não deixou com que eu o fizesse.
- Como é seu nome?
- Roberta Bertoncelli – respondi.
- Quantos anos você tem?
- 23.
- Nós não conseguimos entrar em contando com nenhum conhecido seu, pois seu celular precisa de senha para ser ligado.
- A senha é 1526. Ligue para Lucas, seu número está nas chamadas efetuadas.
- Ok! Chamaremos ele.
- O que aconteceu comigo? – perguntei.
Ainda estava confusa, com as palavras de Levi se repetindo em minha cabeça que doía.
- Você foi atropelada na avenida principal por um carro em alta velocidade, mas está tudo bem com você e com o seu bebê.
- Bebê?
E mais uma vez sua voz ecoou em minha cabeça: "dentro de você".
Lucas não tinha mais o que dizer e o silêncio se fez presente mais uma vez.
O vento ficava mais forte com o entardecer e o frio mais intenso, meu queixo batia e eu tremia com o ar gélido.
- Estou com frio –disse.
- Quer ir agora? – perguntou Lucas.
- Não quero deixá-lo aqui – uma máscara de dor tomava meu rosto toda vez que eu pensava em abandoná-lo naquele cemitério.
- Uma hora você vai ter que ir.
- Eu sei. Vamos ficar mais uns minutos. Quero deixar velas para ele, logo vai escurecer.
Levantei e fui em direção a seu túmulo. Lucas seguiu-me.
Tirei da bolsa dois sacos de velas e acendi todas ao lado de seu túmulo aonde o vento não chegava para apagá-las.
- Não vai ficar tão escuro agora, amor – falei olhando seu túmulo.
- Medroso – disse Lucas.
Repreendi com um olhar e ele sorriu tristemente.
Nós deixamos o cemitério quando a luz do dia já tinha partido e a relutância dos meus sentidos deixou-me estagnada ao portão.
- Vou ficar – disse chorando.
- Amanhã a gente volta.
- Promete?
- Prometo – abraçou-me e praticamente me carregou até o carro.
Meu quarto era tão vazio sem os barulhos constantes que ele fazia e sua risada infantil, não fiquei no quarto por muito tempo, lá dentro a ausência se fazia maior.
Comi duas colheradas de uma sopa ruim e fiquei até às quatro horas da manhã no sofá olhando para os miniburacos no teto branco, contando e recontando tentando formar figuras ligando um ao outro e quando as retas formaram um L resolvi levantar-me e ir para cama.
Vesti um travesseiro com a camisa que ele havia esquecido ali, afundei meu rosto nele para que todo o perfume entrasse por minhas narinas e chorei baixinho até entrar no estágio de quase sono.
Foi aí que eu senti uma esperança surgindo dentro de mim, uma luz vindo lá do outro lado da galáxia.
- Bibs – ouvi.
Só uma pessoa no mundo me chamava assim e essa pessoa havia morrido.
- Levi? Perguntei sentando na cama.
Precisei de alguns segundos para minha visão acostumar-se com o breu total e não havia nada lá dentro além de móveis e roupas espalhadas. Acendi o abajur, olhei em volta e nada, bom, eu deveria estar delirando.
Levantei e fui até a cozinha pegar um copo d’água e em minha geladeira ainda estava colado seu bilhete carinhosamente debochado: “Fui comprar sorvete. Não chore, eu volto logo”. E embaixo dele eu havia escrito “eu sobrevivo”. Que irônico ler isso agora, não sei quanto mais eu sobreviverei, esperar que ele voltasse do mercado, do trabalho ou da sorveteria era fácil, mas agora ele não voltaria e eu não sabia como agir diante dessa falta desesperadora.
Retornei ao quarto envolta em todos esses pensamentos, abracei o travesseiro onde estava sua camisa e fiquei pensando em como sobreviver, por quem e porquê seguir. Eu não tinha razões para seguir, queria ficar no passado, vivê-lo novamente, não queria uma vida e um mundo onde Levi não existisse e mais uma vez eu chorei por incontáveis minutos afogando-me em soluços desesperados e grunhidos de dor.
Nenhuma perda na minha vida inteira se comparava a essa, nenhuma dor poderia ser maior, eu estava tão sufocada e tão desesperada que não respondia mais por mim, gritava com o rosto enfiado no travesseiro, suplicava para que voltasse, para que fizesse parar, para dizer que iria ficar e nunca mais partiria.
Nada aconteceu, foi tudo em vão e aquela desgraça corroia-me por dentro, como se fosse ácido sulfúrico.
Minhas forças estavam se esvaindo e eu fiquei encolhida e imóvel apenas sentido as lágrimas caírem dos meus olhos e molharem o travesseiro até a exaustão me nocautear e pregar meus olhos.
Na manhã seguinte o toque alto do telefone despertou-me e por um segundo imaginei que fosse Levi para me desejar um bom dia e me fazer ter certeza de que tudo aquilo tinha sido um pesadelo, mas a realidade se fez presente.
- Alô?
- Oi Rô! Sou eu, Lucas.
- Ah, claro.
- Liguei para saber como você está – disse.
- Viva, infelizmente.
- Não fala assim, você vai conseguir.
- Não quero falar sobre isso.
- Ok, você quer voltar lá hoje? – perguntou.
- Sim – assenti.
Duas horas depois Lucas chegou para voltarmos ao cemitério.
- Quero ir sozinha – disse a ele quando chegamos ao portão.
- Tá, eu espero no carro.
Andei até seu tumulo segurando o choro que se amontoava em minha garganta.
Sentei em cima do tumulo com as pernas cruzadas e olhei por algum tempo a foto sobre o epitáfio.
- Oi – disse a ele que jazia lá no fundo. - Espero que não seja tão ruim aí, senti-me feliz ontem quando ouvi tua voz me chamando, queria ter ido junto, não quero ficar aqui sozinha, tenho medo do mundo sem você.
As palavras saiam salgadas com as lágrimas que escorriam face a baixo.
- Ah, desculpa por ter dito aquelas coisas ao padre ontem, eu sei que te chateia a minha descrença, mas eu espero do fundo do meu coração que você tenha encontrado o teu céu e que nele haja todos aqueles anjos bonitos que descrevem os livros.
Fiquei sentada lá mais de uma hora e até o resultado dos jogos e os recados dos amigos eu contei a ele entre uma crise de choro e outra, então resolvi que era hora de voltar, acendi outro pacote de velas e voltei para o carro lutando contra a insanidade que queria que meus pés girassem e voltassem para ficar com ele.
Os dias que se passaram foram longos como anos, toda amanhã eu ia até o cemitério e conversava com ele, as vezes voltava escondida a tarde e pulava a grade lateral se o portão estivesse trancado, precisava conversar com ele, pois eu não tinha mais ninguém que pudesse compreender a dor que arruinava meu ser.
Quando voltava do cemitério vestia suas roupas que estavam na minha casa e borrifava seu perfume nos cômodos e com o chegar da noite as coisas se complicavam, às 20 horas quando ele deveria chegar do trabalho não havia barulho de chaves na minha porta, nem músicas assoviadas vindo do começo do corredor e o silêncio que se instalava dentro de casa era aterrador.
Antes de dormir eu conversava com as paredes imaginando que ele pudesse me escutar, pedia que voltasse ou que me levasse junto e mais uma vez chorava incontrolavelmente até que o sono me derrubasse, levando-me para mais uma madrugada desesperadora de pesadelos terríveis.
No décimo dia após sua morte acordei aturdida em razão de algum pesadelo repetido. Eram sete horas da manhã, cedo demais para Lucas vir me buscar, então resolvi ir sozinha até o cemitério.
Caminhei por quase duas horas para chegar até lá, o portão já estava aberto e minhas pernas sabiam qual caminho deveriam seguir.
- Oi Levi – minha garganta ainda tinha aquele nó que não se desfazia por nada.
Sentei-me em seu túmulo e ali permaneci quieta por um tempo, não tinha muito a dizer a ele essa manhã. Girava sua aliança em meu dedo quando o ouvi novamente.
- Bibs – chamava.
- Aqui! Disse levantando e olhando ao redor.
Seria possível encontrá-lo? Daria minha vida por isso.
Caminhei por entre túmulos procurando por ele enquanto sua voz ressoava em minha cabeça.
Agora eu corria por entre túmulos e jazigos atrás de um rastro que fosse e mais uma vez sua voz me surpreendeu.
- Escute – disse.
Minhas pernas travaram bruscamente e eu fiquei imóvel.
- Onde você está? Por favor, Levi, apareça e leve-me com você. Por favor.
Não respondia minha perguntas, apenas repetia.
- Escute, preciso que escute.
Foi o que eu fiz, detive-me ao som que vinha de algum lugar e quando estava completamente atenta ele disse:
- Dentro de você está a razão para continuar, dentro de você.
E foi só, não havia mais som algum no cemitério e aquelas palavras ficaram martelando na minha cabeça enquanto eu andava feito uma louca até a saída.
Passei pelo vigia repetindo as palavras que tinha escutado, elas não faziam sentido para mim.
Caminhei por ruas ermas até chegar à avenida, minhas pernas iam sozinhas enquanto minha mente continuava imersa em suas palavras.
Não vi de qual lado o carro veio, só ouvi o som dos pneus freando no asfalto e depois escuridão total.
Vi Levi sorrindo e repetindo as palavras que havia dito no cemitério, não podia tocá-lo, mas sabia que estava ali comigo.
- Moça, moça – uma voz carregou-me para longe de Levi.
Meus olhos abriram e eu reconheci aquele lugar. A emergência do hospital.
Tentei erguer-me, mas uma enfermeira não deixou com que eu o fizesse.
- Como é seu nome?
- Roberta Bertoncelli – respondi.
- Quantos anos você tem?
- 23.
- Nós não conseguimos entrar em contando com nenhum conhecido seu, pois seu celular precisa de senha para ser ligado.
- A senha é 1526. Ligue para Lucas, seu número está nas chamadas efetuadas.
- Ok! Chamaremos ele.
- O que aconteceu comigo? – perguntei.
Ainda estava confusa, com as palavras de Levi se repetindo em minha cabeça que doía.
- Você foi atropelada na avenida principal por um carro em alta velocidade, mas está tudo bem com você e com o seu bebê.
- Bebê?
E mais uma vez sua voz ecoou em minha cabeça: "dentro de você".
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010
Dentro de Você - Meio
Olhei em sua direção e senti certo alívio ao ver seu rosto. Lucas era nosso amigo há anos e participava do nosso universo, sempre esteve próximo antes de ir morar na Europa após o termino da faculdade.
Eu ainda não havia largado a mão de Levi quando ele me abraçou forte e beijou meu rosto.
- Sinto muito, Rô – seus olhos estavam cheios d’água.
- Eu também – enfiei o rosto em seu ombro e me agarrei a ele.
Choramos juntos por algum tempo.
Lucas e Levi estudaram juntos desde o tempo de criança até a faculdade, o elo entre os dois era muito forte e mesmo com o afastamento de Lucas os dois mantinham contato quase que diariamente. Eram praticamente irmãos e quando nos conhecemos eu era a mascote deles, foi a época gloriosa de nossas vidas, tínhamos quatorze anos e tudo era divertido e desafiador, nos conhecemos na escola no meio da oitava série quando eu mudei para a cidade e desde então permanecemos unidos como uma mini família de adolescentes, uma irmandade imatura que cresceu com o tempo, que aprendeu a ser “gente grande” e Levi odiava ser gente grande, dizia que gostaria de ter 15 anos pro resto da vida assim nós não teríamos que nos preocupar em ser responsáveis ou trabalhar para comer.
- Eu vou cuidar dela, cara – disse Lucas debruçando-se sobre o caixão. – Vou ajudá-la a superar, você vai fazer falta.
Sua mão segurava a minha e eu segurava a mão gélida de Levi.
- Quer ir um pouco lá para fora, Rô? – perguntou Lucas.
- Não! Vou ficar aqui com ele, pode ir.
Beijou o rosto do amigo morto e saiu.
Olhar para ele ali, imóvel e não poder fazer nada era muito mais que doloroso.
Meia hora se passou e um padre entrou na capela, Levi era católico, Lucas e eu não víamos fundamentos para acreditar na religião.
O padre pediu para que todos se reunissem para que fosse rezada uma pequena missa e logo Lucas entrou e ficou ao meu lado. Enquanto a missa acontecia desliguei-me do mundo fiquei o tempo todo acariciando o rosto e os cabelos da minha metade que permanecia inanimada dentro daquele caixão, minhas lágrimas pingavam sobre ele e umedeciam o colarinho de sua blusa azul que eu havia dado em seu último aniversário.
Fez vinte e três anos no verão passado e comemoramos nosso aniversário juntos, pois era apenas dez dias mais velho que eu.
Por menor que fossem as lembranças enchiam minha cabeça e tornavam-se um imã para outras milhões delas, lembranças felizes dos nove anos que passamos juntos. Isso me tirava da dor, fazia com que eu o esquecesse ali deitado, frio com o ritmo cardíaco esquecido.
- Está na hora – disse Lucas puxando-me para trás.
- Hora de que? – fiz com que ele me largasse.
- Eles vão fechar o caixão.
- Não! Gritei. – Não o tranquem aí, ele odeia lugares fechados, não o tranquem, por favor.
O padre veio até mim e colocou a mão em meu ombro.
- Acalme-se, minha filha. Agora é a hora dele, foi a vontade de Deus.
Uma raiva enorme subiu pelo meu corpo, meus dentes trincaram e meus olhos quase foram ejetados de meu rosto.
- O seu Deus o levou e não há nada que você diga que possa amenizar essa perda. Que Deus é esse que mata um inocente sem mais nem menos?
- Acalme-se, filha – repetiu o padre.
- Não peça para que eu me acalme se não sabe o que eu sinto.
- Deus o... – tentou continuar.
- Engula o seu Deus – dei as costas ao padre.
Voltei para o lado de Levi, olhei seu rosto mais uma vez e beijei-o.
- Desculpe! Você sabe que nunca acreditei – beijei-o novamente.
Seu pai e outros homens estavam pegando a tampa do caixão e caminhando até ele.
Segurei firme suas mãos e cochichei em seu ouvido:
- Vai ficar tudo bem, não é tão apertado quando parece, vou estar por perto – uma lágrima escorreu do meu rosto para o dele. – Eu te amo!
Foi a última coisa que disse a ele em vida na sacada de minha casa sobre os degraus de pedra e agora a última coisa antes de trancarem seu caixão.
Meu coração rufava dentro do peito ao vê-los trancando-o lá dentro, ele tinha tanto medo de lugares fechados, odiava elevadores ou qualquer outro lugar que pudesse ficar trancado e nunca chaveava portas nem trancava janelas.
Peguei em uma alça de seu caixão. Eu ajudaria a carregá-lo.
- Você vem? – perguntei a Lucas.
Ele assentiu, pegou outra alça ao meu lado e então iniciamos a nossa última caminhada a três, a última vez que andaríamos lado a lado.
Não lembro o peso de seu caixão nem se fazia frio enquanto andávamos, só o que recordo é do sofrimento e de como as lágrimas cortavam meu rosto ao carregar meu noivo para o sepulcro. Lucas olhou para mim e disse sem som algum para que levantasse minha cabeça e encarasse aquilo e foi o que fiz. Respirei fundo, levantei minha cabeça e andei, mantive o foco mesmo com as lágrimas embaçando minha visão, segui e naquele exato momento a emoção que brotou foi algo parecido com o orgulho que sentia quando andava com Levi pelas ruas da cidade. Eu tinha o privilégio de tê-lo, aquele ser fantástico me amava como todas suas forças, independente das circunstancias e nada no mundo poderia mudar isso, nem a morte.
Chegamos até a sua cova e a claustrofobia dele berrava dentro de mim, não queria colocá-lo ali, não queria que o tapassem com terra.
- Lucas você não pode deixar que façam isso – agarrei-o pelos braços. – Ele tem medo, você sabe. Você estava junto aquela vez que o elevador parou e ele desmaiou de medo. Diga para pararem.
- Roberta, ele-está-morto – sua voz era ríspida.
- Mas e se... E se ele acordar de repente e se voltar a viver? – soluçava baixo ao falar.
- Ele não vai ressuscitar. Ele está morto, os órgãos dele foram doados. Ele está morto – seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas ainda assim eram duros.
Limpei as lágrimas que escorriam pelo meu rosto e voltei para perto do caixão. Mais uma vez o padre falava sobre o quanto Levi tinha sido bom filho, bom amigo e bom companheiro durante a vida e eu me perguntava o porquê de dizer tudo aquilo se nem mesmo o conhecia, ele não era bom, era extraordinário, a melhor pessoa, o coração mais puro que eu já conheci.
Se eu pudesse teria mandado aquele padre calar sua santa boca ou lavá-la antes de falar de Levi, mas eu já tinha recuperado meu juízo naquele momento ou entrado em choque completo, pois já não chorava só sentia raiva de tudo e de todos, não queria ninguém perto de mim, que fossem todos embora, eu o enterraria se fosse preciso, entraria junto no caixão se ele sentisse medo, não iria embora nunca.
Posicionaram as cordas para levar seu caixão ao fundo da cova, não suportava aquilo. Andei até ele e pus a rosa vermelha sobre seu caixão.
- Esta tudo bem, não tenha medo – o desespero se debatia dentro de mim e eu tinha vontade de urrar minha dor à todos. – Eu vou te encontrar em algum lugar.
Não esperei para ver seu caixão sendo baixado, não deixaria que jogassem terra sobre ele se estivesse por perto, então saí e observei-os de longe sentada em um banco debaixo de uma árvore ainda nua pelo frio rigoroso do inverno. Distante eu sentia a revolta diminuir, pensava nele ainda presente e girava sua aliança, agora em meu dedo juntamente com a minha.
Um cheiro forte trazido pelo vento fez meu estomago vazio embrulhar, vomitei o nada que havia comido e me senti fraca. Vi ao longe que as pessoas estavam indo embora lentamente e Lucas vindo até mim, sentou-se ao meu lado sem dizer uma palavra e em silêncio permanecemos por algum tempo.
- Desculpe – disse ele.
- Tudo bem!
- Você passou mal?
- Sim – não tinha muitas palavras.
- Vamos embora então – sugeriu.
- Não, quero ficar mais um pouco – eu disse.
Ficamos ali sentados sem dizer nenhuma palavra com o queixo apoiado nas mãos até o céu empalidecer.
- Levi chorou quando você foi embora – disse a Lucas.
- Ele chorou na sala de espera da emergência quando aquele fusca atropelou você – riu.
- O pavor dele quando me juntou do chão foi terrível, achei que ele fosse ter um treco antes de mim.
- Vocês dois pareciam de cera quando cheguei a emergência do hospital. Levi estava sem camisa, cheio de sangue nos braços, segurando a camiseta contra o corte na sua cabeça e você toda arrebentada deitada naquela maca.
- Tenho a cicatriz ainda – passei a mão no corte no lado direito da minha testa, próximo a sobrancelha. – Poderia ter sido eu ao invés dele.
A melancolia chegou como uma enxurrada em cima das lembranças.
- Ele não aguentaria – disse Lucas.
- Eu não vou aguentar – confessei.
[ Continua ]
Eu ainda não havia largado a mão de Levi quando ele me abraçou forte e beijou meu rosto.
- Sinto muito, Rô – seus olhos estavam cheios d’água.
- Eu também – enfiei o rosto em seu ombro e me agarrei a ele.
Choramos juntos por algum tempo.
Lucas e Levi estudaram juntos desde o tempo de criança até a faculdade, o elo entre os dois era muito forte e mesmo com o afastamento de Lucas os dois mantinham contato quase que diariamente. Eram praticamente irmãos e quando nos conhecemos eu era a mascote deles, foi a época gloriosa de nossas vidas, tínhamos quatorze anos e tudo era divertido e desafiador, nos conhecemos na escola no meio da oitava série quando eu mudei para a cidade e desde então permanecemos unidos como uma mini família de adolescentes, uma irmandade imatura que cresceu com o tempo, que aprendeu a ser “gente grande” e Levi odiava ser gente grande, dizia que gostaria de ter 15 anos pro resto da vida assim nós não teríamos que nos preocupar em ser responsáveis ou trabalhar para comer.
- Eu vou cuidar dela, cara – disse Lucas debruçando-se sobre o caixão. – Vou ajudá-la a superar, você vai fazer falta.
Sua mão segurava a minha e eu segurava a mão gélida de Levi.
- Quer ir um pouco lá para fora, Rô? – perguntou Lucas.
- Não! Vou ficar aqui com ele, pode ir.
Beijou o rosto do amigo morto e saiu.
Olhar para ele ali, imóvel e não poder fazer nada era muito mais que doloroso.
Meia hora se passou e um padre entrou na capela, Levi era católico, Lucas e eu não víamos fundamentos para acreditar na religião.
O padre pediu para que todos se reunissem para que fosse rezada uma pequena missa e logo Lucas entrou e ficou ao meu lado. Enquanto a missa acontecia desliguei-me do mundo fiquei o tempo todo acariciando o rosto e os cabelos da minha metade que permanecia inanimada dentro daquele caixão, minhas lágrimas pingavam sobre ele e umedeciam o colarinho de sua blusa azul que eu havia dado em seu último aniversário.
Fez vinte e três anos no verão passado e comemoramos nosso aniversário juntos, pois era apenas dez dias mais velho que eu.
Por menor que fossem as lembranças enchiam minha cabeça e tornavam-se um imã para outras milhões delas, lembranças felizes dos nove anos que passamos juntos. Isso me tirava da dor, fazia com que eu o esquecesse ali deitado, frio com o ritmo cardíaco esquecido.
- Está na hora – disse Lucas puxando-me para trás.
- Hora de que? – fiz com que ele me largasse.
- Eles vão fechar o caixão.
- Não! Gritei. – Não o tranquem aí, ele odeia lugares fechados, não o tranquem, por favor.
O padre veio até mim e colocou a mão em meu ombro.
- Acalme-se, minha filha. Agora é a hora dele, foi a vontade de Deus.
Uma raiva enorme subiu pelo meu corpo, meus dentes trincaram e meus olhos quase foram ejetados de meu rosto.
- O seu Deus o levou e não há nada que você diga que possa amenizar essa perda. Que Deus é esse que mata um inocente sem mais nem menos?
- Acalme-se, filha – repetiu o padre.
- Não peça para que eu me acalme se não sabe o que eu sinto.
- Deus o... – tentou continuar.
- Engula o seu Deus – dei as costas ao padre.
Voltei para o lado de Levi, olhei seu rosto mais uma vez e beijei-o.
- Desculpe! Você sabe que nunca acreditei – beijei-o novamente.
Seu pai e outros homens estavam pegando a tampa do caixão e caminhando até ele.
Segurei firme suas mãos e cochichei em seu ouvido:
- Vai ficar tudo bem, não é tão apertado quando parece, vou estar por perto – uma lágrima escorreu do meu rosto para o dele. – Eu te amo!
Foi a última coisa que disse a ele em vida na sacada de minha casa sobre os degraus de pedra e agora a última coisa antes de trancarem seu caixão.
Meu coração rufava dentro do peito ao vê-los trancando-o lá dentro, ele tinha tanto medo de lugares fechados, odiava elevadores ou qualquer outro lugar que pudesse ficar trancado e nunca chaveava portas nem trancava janelas.
Peguei em uma alça de seu caixão. Eu ajudaria a carregá-lo.
- Você vem? – perguntei a Lucas.
Ele assentiu, pegou outra alça ao meu lado e então iniciamos a nossa última caminhada a três, a última vez que andaríamos lado a lado.
Não lembro o peso de seu caixão nem se fazia frio enquanto andávamos, só o que recordo é do sofrimento e de como as lágrimas cortavam meu rosto ao carregar meu noivo para o sepulcro. Lucas olhou para mim e disse sem som algum para que levantasse minha cabeça e encarasse aquilo e foi o que fiz. Respirei fundo, levantei minha cabeça e andei, mantive o foco mesmo com as lágrimas embaçando minha visão, segui e naquele exato momento a emoção que brotou foi algo parecido com o orgulho que sentia quando andava com Levi pelas ruas da cidade. Eu tinha o privilégio de tê-lo, aquele ser fantástico me amava como todas suas forças, independente das circunstancias e nada no mundo poderia mudar isso, nem a morte.
Chegamos até a sua cova e a claustrofobia dele berrava dentro de mim, não queria colocá-lo ali, não queria que o tapassem com terra.
- Lucas você não pode deixar que façam isso – agarrei-o pelos braços. – Ele tem medo, você sabe. Você estava junto aquela vez que o elevador parou e ele desmaiou de medo. Diga para pararem.
- Roberta, ele-está-morto – sua voz era ríspida.
- Mas e se... E se ele acordar de repente e se voltar a viver? – soluçava baixo ao falar.
- Ele não vai ressuscitar. Ele está morto, os órgãos dele foram doados. Ele está morto – seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas ainda assim eram duros.
Limpei as lágrimas que escorriam pelo meu rosto e voltei para perto do caixão. Mais uma vez o padre falava sobre o quanto Levi tinha sido bom filho, bom amigo e bom companheiro durante a vida e eu me perguntava o porquê de dizer tudo aquilo se nem mesmo o conhecia, ele não era bom, era extraordinário, a melhor pessoa, o coração mais puro que eu já conheci.
Se eu pudesse teria mandado aquele padre calar sua santa boca ou lavá-la antes de falar de Levi, mas eu já tinha recuperado meu juízo naquele momento ou entrado em choque completo, pois já não chorava só sentia raiva de tudo e de todos, não queria ninguém perto de mim, que fossem todos embora, eu o enterraria se fosse preciso, entraria junto no caixão se ele sentisse medo, não iria embora nunca.
Posicionaram as cordas para levar seu caixão ao fundo da cova, não suportava aquilo. Andei até ele e pus a rosa vermelha sobre seu caixão.
- Esta tudo bem, não tenha medo – o desespero se debatia dentro de mim e eu tinha vontade de urrar minha dor à todos. – Eu vou te encontrar em algum lugar.
Não esperei para ver seu caixão sendo baixado, não deixaria que jogassem terra sobre ele se estivesse por perto, então saí e observei-os de longe sentada em um banco debaixo de uma árvore ainda nua pelo frio rigoroso do inverno. Distante eu sentia a revolta diminuir, pensava nele ainda presente e girava sua aliança, agora em meu dedo juntamente com a minha.
Um cheiro forte trazido pelo vento fez meu estomago vazio embrulhar, vomitei o nada que havia comido e me senti fraca. Vi ao longe que as pessoas estavam indo embora lentamente e Lucas vindo até mim, sentou-se ao meu lado sem dizer uma palavra e em silêncio permanecemos por algum tempo.
- Desculpe – disse ele.
- Tudo bem!
- Você passou mal?
- Sim – não tinha muitas palavras.
- Vamos embora então – sugeriu.
- Não, quero ficar mais um pouco – eu disse.
Ficamos ali sentados sem dizer nenhuma palavra com o queixo apoiado nas mãos até o céu empalidecer.
- Levi chorou quando você foi embora – disse a Lucas.
- Ele chorou na sala de espera da emergência quando aquele fusca atropelou você – riu.
- O pavor dele quando me juntou do chão foi terrível, achei que ele fosse ter um treco antes de mim.
- Vocês dois pareciam de cera quando cheguei a emergência do hospital. Levi estava sem camisa, cheio de sangue nos braços, segurando a camiseta contra o corte na sua cabeça e você toda arrebentada deitada naquela maca.
- Tenho a cicatriz ainda – passei a mão no corte no lado direito da minha testa, próximo a sobrancelha. – Poderia ter sido eu ao invés dele.
A melancolia chegou como uma enxurrada em cima das lembranças.
- Ele não aguentaria – disse Lucas.
- Eu não vou aguentar – confessei.
[ Continua ]
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
Dentro de Você - Início
Havia várias pessoas ao redor de seu caixão quando entrei pela porta lateral daquela capela fria. As janelas estavam entreabertas para que houvesse um pouco de ventilação, mas o vento do final de julho era congelante. As chamas das velas oscilavam toda vez que o vento forte entrava por alguma das aberturas, permaneci a porta observando os rostos conhecidos e inchados de cada um deles, minha família postiça. Estavam tão imersos na dor da perda de alguém tão jovem que não notaram minha presença.
Não existia em mim forças para locomover-me, as mãos fechadas em punhos dentro dos bolsos de meu casaco, meus olhos ocultos atrás do óculos escuro, não queria vê-lo imóvel, frio, sem o rosado saudável que sua pele costumava ter, não podia, era covarde demais, não queria encará-lo dessa forma.
- Roberta! - senti uma mão em meu ombro.
Era Magda, tia dele, a grande culpada por termos nos encontrado. Ela tinha uma alegria natural que cobria-nos quando estávamos a sua volta, mas hoje até ela a mulher do rosto colorido aparentava uma morbidez em seu semblante, uma tristeza mortal.
Com a mão sobre meu ombro conduziu-me mais uma vez até ele, agora para o último encontro, para o adeus. Abria espaço por entre as outras pessoas como já havia feito anos atrás quando disse a ele que era de mim que ele precisava, alguém louca como eu. Todos a nossa volta olhavam-me com um pesar imenso, era lastimável tê-lo perdido tão cedo.
A sua cabeceira estavam o pai e a mãe, separados há anos, unidos agora pela dor de ter um filho morto. Era dolorosa a semelhança entre ele e o pai, seus rostos seriam idênticos não fossem os olhos cor de âmbar herdados da mãe. Cada centímetro dos rostos de seus progenitores trazia a mim uma lembrança. Cumprimentei-os com um balançar de cabeça, pois era o máximo que eu podia fazer naquele momento, logo atrás deles dezenas de coroas de flores de um colorido tímido que traziam em suas faixas homenagens de amigos distantes e ler seu nome em cada uma delas estilhaçava meu coração.
As lágrimas caiam de meus olhos sem que eu sentisse e embaçavam os óculos impedindo minha visão. As mãos de Magda me ampararam quando meus joelhos cederam e quase fui ao chão, tudo a nossa volta ficou branco, gelado e girava tão rápido que perdi o equilíbrio por um momento.
Vozes, choros, soluços foi o que ouvi quando comecei a recuperar meus sentidos. Colocaram-me sentada ao lado de seu caixão e por mais de dez minutos olhei para a renda branca que caia de dentro dele e roçava na madeira escura. Não pensava em levantar e tocá-lo, não podia tocá-lo naquela circunstancia, tinha medo de vê-lo, não queira aceitar que toda aquela vontade de viver que transparecia de seus olhos não estava mais presente.
Queria lembrar-me dele como na última vez que nos vimos, pois sorria e cantava tanto que sol ausente parecia nos aquecer naquela tarde chuvosa e fria. Estávamos em seu quarto tocando violão, eu dedilhava alguma bossa nova e ele inventava rimas para minha melodia vulgar. Vestia um casaco branco fino para a estação e zombava por eu estar enrolada em um edredom xadrez de azul e branco, que recendia seu perfume, e ainda assim reclamar do frio.
Estava mergulhada naquelas lembranças e podia, imediatamente, afogar-me nelas e ir embora junto dele. A vida não deveria continuar sem que ele estivesse presente para que realizássemos nossos sonhos. Queríamos filhos ruivos com meus olhos verdes e seus dentes perfeitos, ensinaríamos a eles todas as coisas que aprendemos juntos e um dia poderíamos contar-lhes como éramos felizes em tê-los tido.
Tínhamos tantos planos, nossa vida estava preparada e nós estávamos preparados para enfrentá-la juntos como sempre fazíamos, estaríamos de mãos dadas e cabeça erguida quando as dificuldades surgissem, pretendíamos ser um time, uma equipe que cresceria com o tempo, cresceria em meu ventre. Pretendíamos.
Sua mãe agachou-se em frente a mim, tirou o óculos do meu rosto e limpou minhas lágrimas.
- Por que, Helena? Por que ele? - as palavras rasgavam o nó em minha garganta.
Balançou a cabeça negativamente como se dissesse que não compreendia também, que sofria tanto quanto eu por tê-lo perdido. Então lágrimas se acumularam em seus olhos tristes despencando face a baixo e pingaram em minha calça, seu rosto pousou em meus joelhos e chorou cada vez mais, fazendo com que soluços brotassem de seu peito. Acariciei seus cabelos que eram escuros como os cabelos de seu filho que jazia ao nosso lado.
Se ele estivesse entre nós em um momento como esse teria nos abraçado e dito algo para que ríssemos, tentaria nos confortar a todo custo.
Era sempre tão amoroso conosco, as mulheres de sua vida, tratava-nos com tanto carinho que era impossível não ficar comovida com sua dedicação, olhava-nos quase admiração e fazia com que nos sentíssemos as pessoas mais importantes do mundo. Quando sorria seus pequenos olhos âmbar cintilavam e então era minha vez de olhá-lo com admiração e a pureza do amor que sentia – sinto e nunca deixarei de sentir - transbordava de mim e ali eu poderia permanecer por horas, apenas olhando para ele, procurando alguma parte de seu rosto que eu ainda não conhecesse.
Todo meu corpo doía rejeitando o movimento para levantar-me, não tinha forças era eu contra mim, a razão que me mandava levantar e a emoção que se debatia em meu ser mantendo-me sentada com as mão sobre os cabelos de Helena.
- Levante-se agora, querida. Roberta precisa de um tempo – disse Magda a Helena.
- Quando você estiver pronta pode vê-lo – disse a mim.
- Não quero tia, por favor – supliquei.
- Você precisa ter força para enfrentar – tinha a mesma ternura que ele costumava usar ao falar comigo.
- Minha força está dentro desse caixão.
Encolhi-me na cadeira, as mão ao redor da cintura, a cabeça nos joelhos e chorava tanto que era difícil de respirar, os soluços agora vinham de meu peito que doía de uma forma horrível. Sentia que minha vida havia acabado com a dele.
Minha mão agarrou-se ao caixão e apertava tão forte que meus dedos ficaram roxos, não podia perdê-lo. Por que ele não me acordava daquele pesadelo como já havia feito antes?
Por que não estávamos cantando em seu quarto ou correndo para fugir da chuva? Queria seus braços ao meu redor e sua voz serena dizendo que era só um sonho e que ele ficaria comigo até eu pegar no sono novamente. Queria o vivo para me tirar dali, mas ele não veio não me acordou e nem disse que era apenas um sono.
Levantei com as mãos ainda agarradas ao caixão, olhei para seu rosto, parecia dormir tão profundamente, só que dessa vez eu queria perturbar seu sono, queria que levantasse para que eu dissesse bom dia. Não acordou.
Afaguei rosto e ele não respirou fundo como costumava fazer, não sorriu. Segurei sua mão, mas a sua não apertou a minha nem tentou estralar meus dedos, ele não sorria, oh meu Deus. Passei os dedos por seus lábios e ele não tentou mordê-los.
- Vamos Levi, acorda – segurei seus ombros. – Por favor, acorda, não faz isso comigo. Não faz por tudo que é mais sagrado. Não me deixa, não, NÃÃÃÃO – gritava completamente desesperada.
Ninguém tentou me tirar de perto dele, eu não permitiria, bateria neles se fosse preciso, ninguém o tiraria de mim, nem Deus, nem a morte, nem o Diabo. Eu acabaria com eles, um por um se fosse preciso, mas ninguém o levaria de mim.
Minhas lágrimas tinham molhado seu rosto pálido e algumas pareciam vir dos seus olhos, como eu queria que fosse verdade, queria que ele chorasse comigo. Deitei sobre seu peito chorando sem parar e por um segundo cheguei sentir sua mão em meus cabelos, mas era delírio, suas mãos continuavam cruzadas sobre o peito, próximas ao meu rosto, frias como uma pedra, envolvi-as entre as minhas para aquecê-las, para ressuscitá-lo.
Fiquei muito tempo recurvada sobre ele, quando não havia mais lágrimas cantarolei Someday we’ll know para ele e meu corpo inteiro ainda retorcia-se naquela luta interior, meus músculos estavam rijos.
- Já é o suficiente – disse Helena tentando me tirar do peito de Levi.
- Não – protestei. - Deixe-me ficar, eu preciso.
Não disse nada, só afastou-se de mim e novamente recolheu-se a seu luto.
Permaneci sobre seu peito desejando adormecer ali como tinha feito na primeira vez que dormimos juntos em um quarto de hotel barato no centro da cidade. Tínhamos dezesseis e estávamos tão apaixonados que se o mundo desabasse nem notaríamos, estávamos imersos um no outro ignorando a decadência das paredes mal pintadas, a cama estreita, a antena velha sobre a TV, a mesa bamba e uma janela que dava para os fundos de algum lugar abandonado. Nada disso importava, pois nós tínhamos um ao outro naquele momento e para mim não existia mais nada entre o céu e a terra que não fosse Levi e seu corpo esguio e alto sobre o meu naquela entrega total e recíproca.
- Roberta, você precisa se levantar daí, as pessoas querem se despedir dele – Magda quase ordenava.
- Tudo bem – levantei.
Não o deixaria ali, segurei sua mão e permaneci a seu lado enquanto todos passavam, olhavam-no e davam-me os pêsames, agradecia com um aceno de cabeça, pois me faltavam palavras e sentia que se falasse um ai sequer desabaria em um pranto incontido novamente.
Não lembro quais pessoas passaram por nós enquanto segurava sua mão, elas não me importavam, a pena que elas sentiam não o trariam de volta a vida, suas lágrimas e palavras não abrandariam a dor que crescia cada vez mais em mim. Ninguém no mundo sentiria o mesmo que eu, ninguém sabia tudo sobre nós, pois éramos fechados demais vivíamos no nosso universo onde podíamos ser quem realmente éramos com todos os defeitos que as outras pessoas não aceitavam, mas ele me aceitava e eu o aceitava do jeito que viesse feliz ou triste, louco ou certo demais, mudo ou falante, não importava como eu sempre estaria ali para compartilhar de sua vida.
- Ah, cara! Como isso foi acontecer?! - exclamou alguém na porta.
[ Continua ]
Não existia em mim forças para locomover-me, as mãos fechadas em punhos dentro dos bolsos de meu casaco, meus olhos ocultos atrás do óculos escuro, não queria vê-lo imóvel, frio, sem o rosado saudável que sua pele costumava ter, não podia, era covarde demais, não queria encará-lo dessa forma.
- Roberta! - senti uma mão em meu ombro.
Era Magda, tia dele, a grande culpada por termos nos encontrado. Ela tinha uma alegria natural que cobria-nos quando estávamos a sua volta, mas hoje até ela a mulher do rosto colorido aparentava uma morbidez em seu semblante, uma tristeza mortal.
Com a mão sobre meu ombro conduziu-me mais uma vez até ele, agora para o último encontro, para o adeus. Abria espaço por entre as outras pessoas como já havia feito anos atrás quando disse a ele que era de mim que ele precisava, alguém louca como eu. Todos a nossa volta olhavam-me com um pesar imenso, era lastimável tê-lo perdido tão cedo.
A sua cabeceira estavam o pai e a mãe, separados há anos, unidos agora pela dor de ter um filho morto. Era dolorosa a semelhança entre ele e o pai, seus rostos seriam idênticos não fossem os olhos cor de âmbar herdados da mãe. Cada centímetro dos rostos de seus progenitores trazia a mim uma lembrança. Cumprimentei-os com um balançar de cabeça, pois era o máximo que eu podia fazer naquele momento, logo atrás deles dezenas de coroas de flores de um colorido tímido que traziam em suas faixas homenagens de amigos distantes e ler seu nome em cada uma delas estilhaçava meu coração.
As lágrimas caiam de meus olhos sem que eu sentisse e embaçavam os óculos impedindo minha visão. As mãos de Magda me ampararam quando meus joelhos cederam e quase fui ao chão, tudo a nossa volta ficou branco, gelado e girava tão rápido que perdi o equilíbrio por um momento.
Vozes, choros, soluços foi o que ouvi quando comecei a recuperar meus sentidos. Colocaram-me sentada ao lado de seu caixão e por mais de dez minutos olhei para a renda branca que caia de dentro dele e roçava na madeira escura. Não pensava em levantar e tocá-lo, não podia tocá-lo naquela circunstancia, tinha medo de vê-lo, não queira aceitar que toda aquela vontade de viver que transparecia de seus olhos não estava mais presente.
Queria lembrar-me dele como na última vez que nos vimos, pois sorria e cantava tanto que sol ausente parecia nos aquecer naquela tarde chuvosa e fria. Estávamos em seu quarto tocando violão, eu dedilhava alguma bossa nova e ele inventava rimas para minha melodia vulgar. Vestia um casaco branco fino para a estação e zombava por eu estar enrolada em um edredom xadrez de azul e branco, que recendia seu perfume, e ainda assim reclamar do frio.
Estava mergulhada naquelas lembranças e podia, imediatamente, afogar-me nelas e ir embora junto dele. A vida não deveria continuar sem que ele estivesse presente para que realizássemos nossos sonhos. Queríamos filhos ruivos com meus olhos verdes e seus dentes perfeitos, ensinaríamos a eles todas as coisas que aprendemos juntos e um dia poderíamos contar-lhes como éramos felizes em tê-los tido.
Tínhamos tantos planos, nossa vida estava preparada e nós estávamos preparados para enfrentá-la juntos como sempre fazíamos, estaríamos de mãos dadas e cabeça erguida quando as dificuldades surgissem, pretendíamos ser um time, uma equipe que cresceria com o tempo, cresceria em meu ventre. Pretendíamos.
Sua mãe agachou-se em frente a mim, tirou o óculos do meu rosto e limpou minhas lágrimas.
- Por que, Helena? Por que ele? - as palavras rasgavam o nó em minha garganta.
Balançou a cabeça negativamente como se dissesse que não compreendia também, que sofria tanto quanto eu por tê-lo perdido. Então lágrimas se acumularam em seus olhos tristes despencando face a baixo e pingaram em minha calça, seu rosto pousou em meus joelhos e chorou cada vez mais, fazendo com que soluços brotassem de seu peito. Acariciei seus cabelos que eram escuros como os cabelos de seu filho que jazia ao nosso lado.
Se ele estivesse entre nós em um momento como esse teria nos abraçado e dito algo para que ríssemos, tentaria nos confortar a todo custo.
Era sempre tão amoroso conosco, as mulheres de sua vida, tratava-nos com tanto carinho que era impossível não ficar comovida com sua dedicação, olhava-nos quase admiração e fazia com que nos sentíssemos as pessoas mais importantes do mundo. Quando sorria seus pequenos olhos âmbar cintilavam e então era minha vez de olhá-lo com admiração e a pureza do amor que sentia – sinto e nunca deixarei de sentir - transbordava de mim e ali eu poderia permanecer por horas, apenas olhando para ele, procurando alguma parte de seu rosto que eu ainda não conhecesse.
Todo meu corpo doía rejeitando o movimento para levantar-me, não tinha forças era eu contra mim, a razão que me mandava levantar e a emoção que se debatia em meu ser mantendo-me sentada com as mão sobre os cabelos de Helena.
- Levante-se agora, querida. Roberta precisa de um tempo – disse Magda a Helena.
- Quando você estiver pronta pode vê-lo – disse a mim.
- Não quero tia, por favor – supliquei.
- Você precisa ter força para enfrentar – tinha a mesma ternura que ele costumava usar ao falar comigo.
- Minha força está dentro desse caixão.
Encolhi-me na cadeira, as mão ao redor da cintura, a cabeça nos joelhos e chorava tanto que era difícil de respirar, os soluços agora vinham de meu peito que doía de uma forma horrível. Sentia que minha vida havia acabado com a dele.
Minha mão agarrou-se ao caixão e apertava tão forte que meus dedos ficaram roxos, não podia perdê-lo. Por que ele não me acordava daquele pesadelo como já havia feito antes?
Por que não estávamos cantando em seu quarto ou correndo para fugir da chuva? Queria seus braços ao meu redor e sua voz serena dizendo que era só um sonho e que ele ficaria comigo até eu pegar no sono novamente. Queria o vivo para me tirar dali, mas ele não veio não me acordou e nem disse que era apenas um sono.
Levantei com as mãos ainda agarradas ao caixão, olhei para seu rosto, parecia dormir tão profundamente, só que dessa vez eu queria perturbar seu sono, queria que levantasse para que eu dissesse bom dia. Não acordou.
Afaguei rosto e ele não respirou fundo como costumava fazer, não sorriu. Segurei sua mão, mas a sua não apertou a minha nem tentou estralar meus dedos, ele não sorria, oh meu Deus. Passei os dedos por seus lábios e ele não tentou mordê-los.
- Vamos Levi, acorda – segurei seus ombros. – Por favor, acorda, não faz isso comigo. Não faz por tudo que é mais sagrado. Não me deixa, não, NÃÃÃÃO – gritava completamente desesperada.
Ninguém tentou me tirar de perto dele, eu não permitiria, bateria neles se fosse preciso, ninguém o tiraria de mim, nem Deus, nem a morte, nem o Diabo. Eu acabaria com eles, um por um se fosse preciso, mas ninguém o levaria de mim.
Minhas lágrimas tinham molhado seu rosto pálido e algumas pareciam vir dos seus olhos, como eu queria que fosse verdade, queria que ele chorasse comigo. Deitei sobre seu peito chorando sem parar e por um segundo cheguei sentir sua mão em meus cabelos, mas era delírio, suas mãos continuavam cruzadas sobre o peito, próximas ao meu rosto, frias como uma pedra, envolvi-as entre as minhas para aquecê-las, para ressuscitá-lo.
Fiquei muito tempo recurvada sobre ele, quando não havia mais lágrimas cantarolei Someday we’ll know para ele e meu corpo inteiro ainda retorcia-se naquela luta interior, meus músculos estavam rijos.
- Já é o suficiente – disse Helena tentando me tirar do peito de Levi.
- Não – protestei. - Deixe-me ficar, eu preciso.
Não disse nada, só afastou-se de mim e novamente recolheu-se a seu luto.
Permaneci sobre seu peito desejando adormecer ali como tinha feito na primeira vez que dormimos juntos em um quarto de hotel barato no centro da cidade. Tínhamos dezesseis e estávamos tão apaixonados que se o mundo desabasse nem notaríamos, estávamos imersos um no outro ignorando a decadência das paredes mal pintadas, a cama estreita, a antena velha sobre a TV, a mesa bamba e uma janela que dava para os fundos de algum lugar abandonado. Nada disso importava, pois nós tínhamos um ao outro naquele momento e para mim não existia mais nada entre o céu e a terra que não fosse Levi e seu corpo esguio e alto sobre o meu naquela entrega total e recíproca.
- Roberta, você precisa se levantar daí, as pessoas querem se despedir dele – Magda quase ordenava.
- Tudo bem – levantei.
Não o deixaria ali, segurei sua mão e permaneci a seu lado enquanto todos passavam, olhavam-no e davam-me os pêsames, agradecia com um aceno de cabeça, pois me faltavam palavras e sentia que se falasse um ai sequer desabaria em um pranto incontido novamente.
Não lembro quais pessoas passaram por nós enquanto segurava sua mão, elas não me importavam, a pena que elas sentiam não o trariam de volta a vida, suas lágrimas e palavras não abrandariam a dor que crescia cada vez mais em mim. Ninguém no mundo sentiria o mesmo que eu, ninguém sabia tudo sobre nós, pois éramos fechados demais vivíamos no nosso universo onde podíamos ser quem realmente éramos com todos os defeitos que as outras pessoas não aceitavam, mas ele me aceitava e eu o aceitava do jeito que viesse feliz ou triste, louco ou certo demais, mudo ou falante, não importava como eu sempre estaria ali para compartilhar de sua vida.
- Ah, cara! Como isso foi acontecer?! - exclamou alguém na porta.
[ Continua ]
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
É proibido fumar - FINAL.
- Não, claro que não. Você está me deixando assustada.
Nunca o vi parado lá, apenas o vi algumas vezes dentro da agência e sempre acreditei que ele fizesse algum trabalho lá. Só de imaginar ele atrás de mim, com os olhos verdes fixos, prestando atenção no que eu fazia, meu coração acelerou e senti um medo horrível, minhas mãos começaram a suar e meus olhos ficaram mais arregalados ainda.
- Tudo bem, Anita, não vai acontecer nada com você - afirmou.
- Quem disse isso? Se ele for tão louco como parece agora vai me matar e vender meu rim - falava tão rápido que talvez Mathias nem entendesse.
- Não surta - pegou-me pelo braço. - Ele não vai fazer nada e também não chegará mais perto de você.
- Não? - perguntei quase triste.
Se ele não se aproximasse mais como eu perguntaria se tudo era verdade? Como eu saberia o que aconteceu?
- Você se importa? - perguntou desconfiado.
- Não! - respondi, mas no fundo me importava.
Mesmo que ele sumisse durante meses e toda vez que aparecesse deixasse uma lacuna de quase loucura, eu sentiria falta da perturbação. Não sei quanto tempo se passou depois da minha resposta, nós ficamos em silêncio, eu olhava fixamente para o palco fingindo estar interessada. Pensei em como seria viver sem a surpresa que ele causava em mim e no momento em que o desespero começava tomar conta da parte racional do meu cérebro um dos amigos de Mathias nos encontrou.
- Vocês! - gritou ele.
Nós olhamos rápido, assustados pela quebra inesperada de nossos pensamentos.
- Você! - sorri para ele. Pela primeira vez nessa noite eu me sentia alegre ao ver algum deles.
- Nós quase morremos procurando vocês, onde estavam?
- Anita estava ajudando uma amiga bêbada e nós tivemos que levá-la para casa. Foi mal não ter avisado vocês, mas se nós demorássemos mais um pouco aqui dentro, teria vômito pelas paredes agora - Mathias disse rindo.
- A coisa não tava muito boa para ela - ri de minha amiga imaginária.
Ele riu conosco e nos convidou a voltar à mesa com todo mundo e agora eu não poderia protestar fui e agi como uma pessoa normal durante o resto da noite.
Era tarde, ou melhor, cedo quando deixamos o bar, estava quase amanhecendo e o cantar dos pássaros entrava nos meus tímpanos. Mathias parou o carro na frente do meu prédio e se desculpou pelo que tinha dito.
- Tudo bem, Mathias, a culpa não é só sua eu exagerei - assumir que também era culpada não feria meu ego.
Ele piscou, não como um tic nervoso, mas assentindo, concordando sem palavras. Parecia ter mais cautela com as palavras agora. Ia soltar o sinto de segurança para sair do carro, mas sua mão prendeu a minha, levantei os olhos para olhá-lo e sua expressão era ilegível.
- O quê? - perguntei.
- Apesar de tudo, foi bom hoje, você até que é divertidinha - deu um sorriso debochado.
- Não te prometi diversão - ri dele. – Conflitos a parte eu gostei também. Ah e seus amigos não são dos piores.
- Eles gostaram de você - deslizou o dedo indicador em minha bochecha.
- Óbvio que gostaram, eu sou irresistível - ri.
- Você é - aproximou o rosto do meu.
- Wooow - disse com sua boca já na minha.
Despedi-me dele desejando que a noite não acabasse, que o sol não nascesse, que os pássaros se calassem e nós tivéssemos mais algumas horas juntos. Abri o portão e quando estava no meio do caminho até a porta ele gritou:
- Anita!
- Ahn? - girei o corpo para olhar para ele.
- Tchau - acenou e sorriu.
- Tchau, Mathias - joguei um beijo para ele e entrei.
Entrei no prédio, passei na ponta dos pés pelo porteiro que dormia debruçado sobre a mesa, subi as escadas e olhei para a placa e me rendi, suspirei por ter perdido a batalha e acendi um cigarro. Se alguém passasse ali àquela hora e me visse, eu só precisaria esperar a multa no final do mês. Venha multa, nem ligo.
Estava cansada demais para pensar nas coisas que tinham acontecido essa noite, complicação demais para um dia só e Mathias podia dizer quantas vezes quisesse que Ricardo não voltaria ou que não o veria mais, mas eu sabia que mais dia, menos dia ele estaria em alguma esquina para bater-se de frente comigo. Não era medo o que eu sentia, era ansiedade, queria adivinhar como as coisas iam ser. A ansiedade de agora era a mesma que assolava meus pensamentos todas as vezes que ele ia embora.
Apaguei o cigarro no solado do sapato e subi até meu apartamento e o susto que levei foi memorável, voltei para as escadas. Não podia acreditar. Espiei pelo canto da porta e era verdade. Corri escada abaixo, queria gritar por socorro ou encontrar uma barra de ferro para me defender, cheguei à portaria, olhei em volta e não tinha nada que eu pudesse usar. Meu coração acelerava a cada segundo e eu me sentia cada vez mais desprotegida.
O porteiro ainda dormia, mas que maldito sono pesado era esse, passei por ele, fui até a porta na esperança de Mathias ter permanecido ali por mais de dez minutos, inútil, a rua estava vazia, então engolindo o pavor de encará-lo novamente subi as escadas e andei lentamente em sua direção. Ele era surreal.
- Ricardo, hey Ricardo, acorda! - chacoalhava o com força.
Ele despertou assustado, perdido, acho que não tinha consciência de onde estava.
- Ah, Anita - sussurrou e envolveu-me em seus braços. - Desculpa, diz que me desculpa! Me perdoa, eu não fiz por mal.
Cada vez seu abraço ficava mais forte e os pedidos mais lamuriosos, senti algo escorrendo em meu ombro. Ele estava chorando, oh meu deus, por que chorava tanto?
- Calma, não precisa disso tudo - limpei as lágrimas de seu rosto.
- Você não vai acreditar em mim nunca, nunca. Vai gritar, chamar a polícia, não vai me deixar falar - as lágrimas vertiam de seus olhos. - Você tem nojo de mim, me olhou com raiva antes.
- Chega dessa histeria, criatura! - falei baixo, não podia gritar e acordar todo mundo.
Ele se afastou de mim, seu corpo deslizou até o outro lado da porta e em seus olhos havia medo, medo de verdade, medo que paralisa.
- O que você quer me dizer? Porque eu não vou acreditar? Eu não tenho nojo de você - eu não me reconhecia com aquela calma toda.
Ele baixou a cabeça, as bochechas rubras em razão do choro.
- Eu imagino o que Mathias te disse - seus olhos estavam mais verdes do que nunca.
- Mathias falou o que foi espalhado por toda a agência.
- Mas é mentira! - disse com os fixos em mim.
- Quem prova isso? - perguntei.
Ele continuava encolhido do outro lado da minha porta com as mãos apoiadas no chão e a cabeça quase encostado aos joelhos.
- Você não vai falar? Se não for vou entrar e vasculhar os jornais, revistas e sites e descobrirei sozinha, sendo assim eu posso tirar minhas próprias conclusões. No momento tudo que eu sei é que você “é um monstro, um verme e me observa enquanto trabalho” - mudei a entonação da voz para que ele percebesse que aquelas eram palavras de outra pessoa.
Endireitou o corpo e prestava plena atenção em mim quando voltei a olhá-lo.
- Você realmente quer saber?
- Sem dúvidas e se você puder começar logo eu agradeço - acomodei-me no chão com as costas apoiadas na parede.
- “Aconteceu há mais ou menos dois anos, eu estava no interior em um festival de rock do qual eu havia participado da divulgação. Era começo de dezembro, um calor infernal. No início eu fiquei apenas “por trás das cortinas” ajudando no que era necessário, o festival começou na sexta e terminaria no domingo, havia bastante gente por lá, todo canto que se olhava tinha barracas montadas e pessoas já bêbadas ao redor delas” – olhava fixo para parede a nossa frente.
Eu estava cada vez mais nervosa e ele falava tão pausadamente que tinha vontade de esganá-lo, mas não o interrompi.
- “As coisas foram bem durante a sexta-feira, não tivemos nenhum transtorno e lá por duas da madrugada meu trabalho acabou. Não tinha bebido o dia todo, não podia fazer nenhuma merda enquanto eu fosse o responsável, o meu já estava na reta, se cometesse o menor deslize iam me chutar da equipe de divulgação e organização. Passei a granada para o outro cara e fui para frente do palco assistir os shows e beber com meus amigos.
A penúltima banda subiu ao palco às quatro horas da manhã, eu estava doidão lá, pulando, batendo cabeça até a hora em que ela apareceu. Era linda, cabelo escuro, pele clara, vestia uma mini saia, uma blusa justa que acompanhava as curvas de seu corpo e seus coturnos estavam sujos de barro, pois tinha chovido durante a tarde.
- Ô cara - disse olhando para mim.
- Eu? - apontei o dedo indicador para mim mesmo.
- É, tu mesmo. Tem fogo? - balançou o cigarro entre os dedos.
Alcancei o isqueiro para ela e ao devolver-me segurou minha mão.
- Eu sou Paola e você?
- Não, eu não sou - eu ri, ela riu e ficamos ali conversando.
A partir daí tudo fluiu normalmente, fomos para a barraca dela, ficamos lá as coisas começaram a esquentar e então...” – o interrompi antes do final da frase.
- Os detalhes mais sórdidos não me interessam, pode passar essa parte - franzi a testa .
- Tudo bem - ele sorriu.
Sua expressão era mais calma agora, parecia aliviado, mas não tinha como disfarçar o cansaço e o sono que quase fechavam seus olhos.
- “Bom, quando acordei às onze horas de sábado ela não estava mais na barraca, levantei e tentei procurar por ela, não a encontrei e ninguém ali tinha a visto, ela voltou para casa, ao menos foi isso que ela disse a polícia.
Na segunda-feira após o festival, um oficial de justiça bateu na minha casa trazendo uma intimação para que eu comparecesse a delegacia e blá blá blá - revirou os olhos. - Fui até lá e a encontrei com a cara inchada de tanto chorar, os olhos vermelhos, sentada em um banco encostada a parede meio encolhida. Quando me viu entrando desabou em um choro incontido, completamente desesperada, foi aí que eu me apavorei, não sabia o que estava acontecendo nem o porque da garota estar lá” - parecia indignado.
- Xiii, mais baixo, vai acordar meus vizinhos.
- Desculpa, ainda não sei lidar com isso, foi injusto, Anita. Nunca forçaria ninguém a isso, ela quis, ela foi até mim - balançava a cabeça com irritação.
- Ainda falta o final - disse.
- “Ela era menor de idade, mas não parecia, tinha dezesseis anos, disse à família que eu tinha a forçado, revirou minhas coisas enquanto eu dormia, pegou minha identidade anotou meu nome completo e fez a denúncia. Eu contei minha versão da história, mas ninguém acreditou. Tive que pagar fiança para sair de lá e foi isso, é essa a verdade” - observava decepcionado a expressão em meu rosto.
- Você não acredita, não é? - perguntou.
- Não acho que você tenha a forçado, eu sei como as coisas são no mundo em que a gente vive, só não entendo porque e ela te denunciou - analisava os fatos de todos os ângulos.
- Ela disse que eu a forcei, mas não o fiz, juro que não, jurei ao delegado, ao juiz, ao meu pai, mas eu sou o bêbado rebelde cheio de testosterona, eles não acreditam - algo ardia em seus olhos, um sentimento múltiplo.
Nada parecia mentira, ele era convincente havia uma sombra de tristeza em sua voz.
- Por que você me observava na agência? - perguntei, sem ligar para a continuidade da conversa.
- Eu não podia chegar perto de você, pois toda vez que eu me aproximava você vinha cheia de perguntas e eu não podia respondê-las, pois você descobriria, como descobriu essa noite, as coisas que pensam de mim e fugiria com nojo. Eu me importo com o que você pensa, eu te observei sim e te segui algumas vezes - revelou sem nenhuma vergonha de tê-lo feito.
- Foi atrás de mim por quê? - estava surpresa.
- Quando você parecia triste eu andava devagar atrás de você e causava um daqueles encontros ocasionais, queria estar perto, mas tinha medo do que você pensaria - seus olhos estavam novamente cheios de lágrimas.
- Você é louco - exclamei incrédula.
- Estou sendo sincero, minha intenção não era te assustar, mas se é a verdade que você quer aqui está a verdade. Eu vivo com um fantasma nas minhas costas há dois anos e não acho que vou me livrar dele com o tempo, eu sou um monstro para as pessoas, um verme como lhe disse Mathias, eu só queria que você soubesse a minha versão dos fatos para não ter de esconder-me mais e é só isso, Anita - levantou-se.
- O que está fazendo?
- Indo embora – disse.
- Não, espera, sente-se. Eu acredito em você, pode parecer absurdo para Mathias e aos outros, mas eu acredito em você. Não existia razão para você ter vindo até aqui esta hora da manhã, você não tinha nenhuma obrigação comigo, mas veio porque se importa - um sorriso escapou de minha boca.
Ele sentou-se ao meu lado e me abraçou.
- Ninguém mais importa Anita, você é a pequena do meu coração - cochichou em meu ouvido.
- Conta como é me seguir - pedi.
Ele riu e deslizou até meu colo.
- Aham. Posso? - seus olhos verdes quase suplicantes.
- Deita.
Mexi em seu cabelo liso e escuro como a noite. O som de sua voz embalou meu sono e ali adormecemos, no mármore gelado do chão do corredor.
Nunca o vi parado lá, apenas o vi algumas vezes dentro da agência e sempre acreditei que ele fizesse algum trabalho lá. Só de imaginar ele atrás de mim, com os olhos verdes fixos, prestando atenção no que eu fazia, meu coração acelerou e senti um medo horrível, minhas mãos começaram a suar e meus olhos ficaram mais arregalados ainda.
- Tudo bem, Anita, não vai acontecer nada com você - afirmou.
- Quem disse isso? Se ele for tão louco como parece agora vai me matar e vender meu rim - falava tão rápido que talvez Mathias nem entendesse.
- Não surta - pegou-me pelo braço. - Ele não vai fazer nada e também não chegará mais perto de você.
- Não? - perguntei quase triste.
Se ele não se aproximasse mais como eu perguntaria se tudo era verdade? Como eu saberia o que aconteceu?
- Você se importa? - perguntou desconfiado.
- Não! - respondi, mas no fundo me importava.
Mesmo que ele sumisse durante meses e toda vez que aparecesse deixasse uma lacuna de quase loucura, eu sentiria falta da perturbação. Não sei quanto tempo se passou depois da minha resposta, nós ficamos em silêncio, eu olhava fixamente para o palco fingindo estar interessada. Pensei em como seria viver sem a surpresa que ele causava em mim e no momento em que o desespero começava tomar conta da parte racional do meu cérebro um dos amigos de Mathias nos encontrou.
- Vocês! - gritou ele.
Nós olhamos rápido, assustados pela quebra inesperada de nossos pensamentos.
- Você! - sorri para ele. Pela primeira vez nessa noite eu me sentia alegre ao ver algum deles.
- Nós quase morremos procurando vocês, onde estavam?
- Anita estava ajudando uma amiga bêbada e nós tivemos que levá-la para casa. Foi mal não ter avisado vocês, mas se nós demorássemos mais um pouco aqui dentro, teria vômito pelas paredes agora - Mathias disse rindo.
- A coisa não tava muito boa para ela - ri de minha amiga imaginária.
Ele riu conosco e nos convidou a voltar à mesa com todo mundo e agora eu não poderia protestar fui e agi como uma pessoa normal durante o resto da noite.
Era tarde, ou melhor, cedo quando deixamos o bar, estava quase amanhecendo e o cantar dos pássaros entrava nos meus tímpanos. Mathias parou o carro na frente do meu prédio e se desculpou pelo que tinha dito.
- Tudo bem, Mathias, a culpa não é só sua eu exagerei - assumir que também era culpada não feria meu ego.
Ele piscou, não como um tic nervoso, mas assentindo, concordando sem palavras. Parecia ter mais cautela com as palavras agora. Ia soltar o sinto de segurança para sair do carro, mas sua mão prendeu a minha, levantei os olhos para olhá-lo e sua expressão era ilegível.
- O quê? - perguntei.
- Apesar de tudo, foi bom hoje, você até que é divertidinha - deu um sorriso debochado.
- Não te prometi diversão - ri dele. – Conflitos a parte eu gostei também. Ah e seus amigos não são dos piores.
- Eles gostaram de você - deslizou o dedo indicador em minha bochecha.
- Óbvio que gostaram, eu sou irresistível - ri.
- Você é - aproximou o rosto do meu.
- Wooow - disse com sua boca já na minha.
Despedi-me dele desejando que a noite não acabasse, que o sol não nascesse, que os pássaros se calassem e nós tivéssemos mais algumas horas juntos. Abri o portão e quando estava no meio do caminho até a porta ele gritou:
- Anita!
- Ahn? - girei o corpo para olhar para ele.
- Tchau - acenou e sorriu.
- Tchau, Mathias - joguei um beijo para ele e entrei.
Entrei no prédio, passei na ponta dos pés pelo porteiro que dormia debruçado sobre a mesa, subi as escadas e olhei para a placa e me rendi, suspirei por ter perdido a batalha e acendi um cigarro. Se alguém passasse ali àquela hora e me visse, eu só precisaria esperar a multa no final do mês. Venha multa, nem ligo.
Estava cansada demais para pensar nas coisas que tinham acontecido essa noite, complicação demais para um dia só e Mathias podia dizer quantas vezes quisesse que Ricardo não voltaria ou que não o veria mais, mas eu sabia que mais dia, menos dia ele estaria em alguma esquina para bater-se de frente comigo. Não era medo o que eu sentia, era ansiedade, queria adivinhar como as coisas iam ser. A ansiedade de agora era a mesma que assolava meus pensamentos todas as vezes que ele ia embora.
Apaguei o cigarro no solado do sapato e subi até meu apartamento e o susto que levei foi memorável, voltei para as escadas. Não podia acreditar. Espiei pelo canto da porta e era verdade. Corri escada abaixo, queria gritar por socorro ou encontrar uma barra de ferro para me defender, cheguei à portaria, olhei em volta e não tinha nada que eu pudesse usar. Meu coração acelerava a cada segundo e eu me sentia cada vez mais desprotegida.
O porteiro ainda dormia, mas que maldito sono pesado era esse, passei por ele, fui até a porta na esperança de Mathias ter permanecido ali por mais de dez minutos, inútil, a rua estava vazia, então engolindo o pavor de encará-lo novamente subi as escadas e andei lentamente em sua direção. Ele era surreal.
- Ricardo, hey Ricardo, acorda! - chacoalhava o com força.
Ele despertou assustado, perdido, acho que não tinha consciência de onde estava.
- Ah, Anita - sussurrou e envolveu-me em seus braços. - Desculpa, diz que me desculpa! Me perdoa, eu não fiz por mal.
Cada vez seu abraço ficava mais forte e os pedidos mais lamuriosos, senti algo escorrendo em meu ombro. Ele estava chorando, oh meu deus, por que chorava tanto?
- Calma, não precisa disso tudo - limpei as lágrimas de seu rosto.
- Você não vai acreditar em mim nunca, nunca. Vai gritar, chamar a polícia, não vai me deixar falar - as lágrimas vertiam de seus olhos. - Você tem nojo de mim, me olhou com raiva antes.
- Chega dessa histeria, criatura! - falei baixo, não podia gritar e acordar todo mundo.
Ele se afastou de mim, seu corpo deslizou até o outro lado da porta e em seus olhos havia medo, medo de verdade, medo que paralisa.
- O que você quer me dizer? Porque eu não vou acreditar? Eu não tenho nojo de você - eu não me reconhecia com aquela calma toda.
Ele baixou a cabeça, as bochechas rubras em razão do choro.
- Eu imagino o que Mathias te disse - seus olhos estavam mais verdes do que nunca.
- Mathias falou o que foi espalhado por toda a agência.
- Mas é mentira! - disse com os fixos em mim.
- Quem prova isso? - perguntei.
Ele continuava encolhido do outro lado da minha porta com as mãos apoiadas no chão e a cabeça quase encostado aos joelhos.
- Você não vai falar? Se não for vou entrar e vasculhar os jornais, revistas e sites e descobrirei sozinha, sendo assim eu posso tirar minhas próprias conclusões. No momento tudo que eu sei é que você “é um monstro, um verme e me observa enquanto trabalho” - mudei a entonação da voz para que ele percebesse que aquelas eram palavras de outra pessoa.
Endireitou o corpo e prestava plena atenção em mim quando voltei a olhá-lo.
- Você realmente quer saber?
- Sem dúvidas e se você puder começar logo eu agradeço - acomodei-me no chão com as costas apoiadas na parede.
- “Aconteceu há mais ou menos dois anos, eu estava no interior em um festival de rock do qual eu havia participado da divulgação. Era começo de dezembro, um calor infernal. No início eu fiquei apenas “por trás das cortinas” ajudando no que era necessário, o festival começou na sexta e terminaria no domingo, havia bastante gente por lá, todo canto que se olhava tinha barracas montadas e pessoas já bêbadas ao redor delas” – olhava fixo para parede a nossa frente.
Eu estava cada vez mais nervosa e ele falava tão pausadamente que tinha vontade de esganá-lo, mas não o interrompi.
- “As coisas foram bem durante a sexta-feira, não tivemos nenhum transtorno e lá por duas da madrugada meu trabalho acabou. Não tinha bebido o dia todo, não podia fazer nenhuma merda enquanto eu fosse o responsável, o meu já estava na reta, se cometesse o menor deslize iam me chutar da equipe de divulgação e organização. Passei a granada para o outro cara e fui para frente do palco assistir os shows e beber com meus amigos.
A penúltima banda subiu ao palco às quatro horas da manhã, eu estava doidão lá, pulando, batendo cabeça até a hora em que ela apareceu. Era linda, cabelo escuro, pele clara, vestia uma mini saia, uma blusa justa que acompanhava as curvas de seu corpo e seus coturnos estavam sujos de barro, pois tinha chovido durante a tarde.
- Ô cara - disse olhando para mim.
- Eu? - apontei o dedo indicador para mim mesmo.
- É, tu mesmo. Tem fogo? - balançou o cigarro entre os dedos.
Alcancei o isqueiro para ela e ao devolver-me segurou minha mão.
- Eu sou Paola e você?
- Não, eu não sou - eu ri, ela riu e ficamos ali conversando.
A partir daí tudo fluiu normalmente, fomos para a barraca dela, ficamos lá as coisas começaram a esquentar e então...” – o interrompi antes do final da frase.
- Os detalhes mais sórdidos não me interessam, pode passar essa parte - franzi a testa .
- Tudo bem - ele sorriu.
Sua expressão era mais calma agora, parecia aliviado, mas não tinha como disfarçar o cansaço e o sono que quase fechavam seus olhos.
- “Bom, quando acordei às onze horas de sábado ela não estava mais na barraca, levantei e tentei procurar por ela, não a encontrei e ninguém ali tinha a visto, ela voltou para casa, ao menos foi isso que ela disse a polícia.
Na segunda-feira após o festival, um oficial de justiça bateu na minha casa trazendo uma intimação para que eu comparecesse a delegacia e blá blá blá - revirou os olhos. - Fui até lá e a encontrei com a cara inchada de tanto chorar, os olhos vermelhos, sentada em um banco encostada a parede meio encolhida. Quando me viu entrando desabou em um choro incontido, completamente desesperada, foi aí que eu me apavorei, não sabia o que estava acontecendo nem o porque da garota estar lá” - parecia indignado.
- Xiii, mais baixo, vai acordar meus vizinhos.
- Desculpa, ainda não sei lidar com isso, foi injusto, Anita. Nunca forçaria ninguém a isso, ela quis, ela foi até mim - balançava a cabeça com irritação.
- Ainda falta o final - disse.
- “Ela era menor de idade, mas não parecia, tinha dezesseis anos, disse à família que eu tinha a forçado, revirou minhas coisas enquanto eu dormia, pegou minha identidade anotou meu nome completo e fez a denúncia. Eu contei minha versão da história, mas ninguém acreditou. Tive que pagar fiança para sair de lá e foi isso, é essa a verdade” - observava decepcionado a expressão em meu rosto.
- Você não acredita, não é? - perguntou.
- Não acho que você tenha a forçado, eu sei como as coisas são no mundo em que a gente vive, só não entendo porque e ela te denunciou - analisava os fatos de todos os ângulos.
- Ela disse que eu a forcei, mas não o fiz, juro que não, jurei ao delegado, ao juiz, ao meu pai, mas eu sou o bêbado rebelde cheio de testosterona, eles não acreditam - algo ardia em seus olhos, um sentimento múltiplo.
Nada parecia mentira, ele era convincente havia uma sombra de tristeza em sua voz.
- Por que você me observava na agência? - perguntei, sem ligar para a continuidade da conversa.
- Eu não podia chegar perto de você, pois toda vez que eu me aproximava você vinha cheia de perguntas e eu não podia respondê-las, pois você descobriria, como descobriu essa noite, as coisas que pensam de mim e fugiria com nojo. Eu me importo com o que você pensa, eu te observei sim e te segui algumas vezes - revelou sem nenhuma vergonha de tê-lo feito.
- Foi atrás de mim por quê? - estava surpresa.
- Quando você parecia triste eu andava devagar atrás de você e causava um daqueles encontros ocasionais, queria estar perto, mas tinha medo do que você pensaria - seus olhos estavam novamente cheios de lágrimas.
- Você é louco - exclamei incrédula.
- Estou sendo sincero, minha intenção não era te assustar, mas se é a verdade que você quer aqui está a verdade. Eu vivo com um fantasma nas minhas costas há dois anos e não acho que vou me livrar dele com o tempo, eu sou um monstro para as pessoas, um verme como lhe disse Mathias, eu só queria que você soubesse a minha versão dos fatos para não ter de esconder-me mais e é só isso, Anita - levantou-se.
- O que está fazendo?
- Indo embora – disse.
- Não, espera, sente-se. Eu acredito em você, pode parecer absurdo para Mathias e aos outros, mas eu acredito em você. Não existia razão para você ter vindo até aqui esta hora da manhã, você não tinha nenhuma obrigação comigo, mas veio porque se importa - um sorriso escapou de minha boca.
Ele sentou-se ao meu lado e me abraçou.
- Ninguém mais importa Anita, você é a pequena do meu coração - cochichou em meu ouvido.
- Conta como é me seguir - pedi.
Ele riu e deslizou até meu colo.
- Aham. Posso? - seus olhos verdes quase suplicantes.
- Deita.
Mexi em seu cabelo liso e escuro como a noite. O som de sua voz embalou meu sono e ali adormecemos, no mármore gelado do chão do corredor.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
É proibido fumar - Parte 3
Eu sentia meus olhos arderem como se tivessem pegando fogo e tinha um grito preso na minha garganta, uma raiva forte demais, eu queria que ele evaporasse da minha frente.
- Mas, Anita isso é tudo verdade e você sempre prezou pela verdade - a raiva de meu rosto se espalhava como espanto em seu rosto pálido.
- Sempre prezei? Há quanto tempo você me conhece? Você vive comigo? Não, eu sou a mentira Mathias e a mentira está dizendo tchau.
Deixei-o ali, parado sozinho na frente do palco, fui ao banheiro e fiquei um tempo encostada a parede esperando a raiva passar. Minha perna tremia freneticamente enquanto eu proferia insultos a ele.
- Hey moça! - a voz veio do fundo do banheiro.
- Sim? - respondi rispidamente.
- Desculpa perguntar, mas está tudo bem?
A preocupação da mulher que limpava o banheiro não deixou que eu fosse rude com ela.
- Estou sim, obrigada - forcei um sorriso.
Ela retribuiu o sorriso, virou a água fétida que estava no balde vermelho dentro da pia, disse tchau e saiu pela porta. A porta de vai-e-vem balançou onze vezes até parar completamente, fui até o espelho, retoquei a maquiagem sem prestar muita atenção no que fazia, não procuraria Mathias para me desculpar, não mesmo. Ele foi longe demais, mexeu com meu ponto fraco, a vida, ele não sabia nem um terço de tudo que eu tinha vivido para agir dessa forma, para me aconselhar como se fosse minha mãe.
Guardei a maquiagem e saí do banheiro.
Era inacreditável. Porque diabos Ricardo estava parado ali na porta?
- O que você tem? - perguntou.
Que ótimo, mais uma pessoa para tentar saber o que se passava comigo.
- E o que você tem a ver com isso? - cuspi as palavras nele.
- Eu me preocupo com você! - aproximou-se de mim.
- Ah, conta outra piada agora, por que essa não teve graça.
Colocou os braços na parede atrás de mim fazendo com que eu ficasse presa entre eles.
- Pelo amor dos deuses, Ricardo, qual é o teu problema? Você passou três vezes, praticamente do meu lado e não olhou na minha cara, agora você vem dizer que se preocupa, vai para o meio do inferno - tentei me desvencilhar de seus braços.
- Porque você nunca acredita em mim, Anita? - parecia suplicar, mas que imbecil.
- Porque você está bêbado. Me deixa sair! Empurrei-o, mas ele não me largou, minha força fez com que ele apertasse mais os braços ao meu redor como uma jibóia louca.
- Hey Ricardo, solta ela, cara!
Era Mathias atrás dele, chegou como se fosse o príncipe salvador da pátria. Que coisa asquerosa!
- Ela quer ficar aqui - Ricardo berrou.
- Não, eu não quero - gritei mais alto que os dois. - E também não preciso de ajuda Mathias, eu me entendo com ele.
- Ah, cala essa boca, Anita - falou isso e puxou Ricardo que me puxou pelo vestido.
As mãos de Ricardo só afrouxaram de meu vestido quando Mathias o segurou pela camisa e gritou para que me soltasse. Eu estava perplexa com tudo aquilo, não sabia como agir, inconscientemente parei atrás de Mathias, enquanto ele berrava ameaças a Ricardo que em nenhum momento desgrudou os olhos dos meus.
- Vem! - ordenou Mathias me arrastando dali.
Meus olhos também não abandonavam os de Ricardo, era como estar presa a um caleidoscópio. Não tinha visto que Mathias já o tinha largado, só obedeci ao que a voz dele dizia e segui seus passos olhando para trás sem conseguir tirar meus olhos daqueles olhos verdes.
- Pronto! Você pode me soltar agora - sorriu tão calmo como se nada tivesse acontecido.
Meus dedos estavam agarrados tão fortemente em sua camiseta que quando soltei a marca deles permaneceu. Mathias puxou uma cadeira e eu me sentei.
- Ah, me desculpe - quase doía dizer isso a ele.
- Não foi nada. Você está bem? - havia preocupação de verdade na sua voz.
- Estou. Não, não estou - não poderia mentir agora. – Ele me assusta.
- Ele não vai voltar, pelo menos não essa noite - arrastou minha cadeira pra perto da dele e pousou o braço sobre meus ombros.
- Obrigada - sorri.
Nós ficamos sentados em silêncio por alguns minutos, até recompormos nossas mentes. O braço dele continuava sobre meus ombros, encostei-me nele e pude sentir seu suspirar quando apoiou o rosto em minha cabeça. Separei uma mexa de cabelo e comecei a enrolar devagar.
- Por que você sempre faz isso? - perguntou.
- Para dar corda nos meus neurônios.
Seu riso foi breve, ainda suspirava de forma preocupada.
- O que foi? - perguntei virando o rosto para ele.
- Você sabe do que se livrou antes?
- Dos seus amigos?! - queria que ele risse.
- É sério, Anita. Você sabe do que eu estou falando - o rosto dele ficou mais preocupado ainda.
Eu não conseguia ver qual era a real gravidade de tudo aquilo, Ricardo tentou me agarrar, Mathias fez com que ele caísse fora e ponto final, não havia algo tão ruim naquilo tudo.
- Ricardo? O que ele poderia fazer de tão grave? - o mistério da conversa me afligia.
- Ricardo é um verme!
Fiz uma careta para ele, não entendia o ódio que ele demonstrava sentir enquanto falava.
- Ah, você não sabe mesmo - afirmou.
- Vai me contar ou o vou ter que ir embora para pesquisar no Google? - saí de baixo dos seus braços e sentei de frente para ele.
- Ano passado, antes de você começar o estágio, Ricardo foi acusado de abuso sexual - eu via a repulsa nos olhos de Mathias. - Não sei exatamente onde e como foi, a única coisa que ficamos sabendo é que ele realmente era culpado e ninguém duvidou disso, pois todo mundo sabia que ele bebia demais e, eventualmente drogava-se.
As órbitas dos meus olhos quase caíram para fora. A estranheza de Ricardo não era novidade para ninguém, mas enlouquecer e abusar sexualmente de alguém era mais que estranheza, era doença.
- Ele não foi preso? - eu estava chocada.
- Foi, mas logo foi solto, os pais dele são ricos, não deve ter passado uma noite na cadeia. O assunto é proibido dentro da agência, porque como você deve saber Ricardo é filho dos donos.
- Eu não sabia, não fazia a menor idéia, não sabia de nada disso.
Era esse o motivo de todo o mistério, Ricardo não queria que eu descobrisse o passado dele, por isso sumia quando eu perguntava algo que pudesse entregar tudo. As poucas vezes que o encontrei na agência contou-me alguma história sobre divulgação de shows e foi embora. Esse era o x da questão, o passado.
- Então era isso! - exclamei.
- Isso o quê? - perguntou Mathias.
- Era por isso que ele fugia de toda e qualquer pergunta que eu fazia - isso não era bem uma resposta a Mathias, mas sim uma resposta a mim mesma.
- Há quanto tempo você conversa com esse monstro? - perguntou assustado.
- Sei lá, antes da agência ainda. Ele sempre freqüentou os mesmos lugares que eu, mas a gente não conversava muito, não sei como explicar, alguma coisa sempre me repelia dele, foram sempre conversas curtas e se ele não fugisse com alguma pergunta minha, eu sentia um medo inexplicável e desaparecia antes que ele pudesse responder.
A confusão que passou pelos olhos me Mathias não era a metade da confusão que se debatia dentro de minha cabeça.
- Essa foi a primeira vez que ele tentou te pegar a força?
- Foi e acho que ele não me machucaria - disse.
- Por quê? Iria bater nele? - zombou.
- Não - estava pensando demais para rir das piadinhas dele. - Ele gosta de mim.
Mathias pareceu chocado, seu rosto ficou severo como se tivesse ouvido um insulto.
- Gosta de você? Ele te persegue, te observa enquanto você trabalha, ninguém me contou eu o vi parado no corredor olhando para você. Vai dizer que nunca o viu lá parado feito um ás de paus? - esbravejou.
[Continua...]
- Mas, Anita isso é tudo verdade e você sempre prezou pela verdade - a raiva de meu rosto se espalhava como espanto em seu rosto pálido.
- Sempre prezei? Há quanto tempo você me conhece? Você vive comigo? Não, eu sou a mentira Mathias e a mentira está dizendo tchau.
Deixei-o ali, parado sozinho na frente do palco, fui ao banheiro e fiquei um tempo encostada a parede esperando a raiva passar. Minha perna tremia freneticamente enquanto eu proferia insultos a ele.
- Hey moça! - a voz veio do fundo do banheiro.
- Sim? - respondi rispidamente.
- Desculpa perguntar, mas está tudo bem?
A preocupação da mulher que limpava o banheiro não deixou que eu fosse rude com ela.
- Estou sim, obrigada - forcei um sorriso.
Ela retribuiu o sorriso, virou a água fétida que estava no balde vermelho dentro da pia, disse tchau e saiu pela porta. A porta de vai-e-vem balançou onze vezes até parar completamente, fui até o espelho, retoquei a maquiagem sem prestar muita atenção no que fazia, não procuraria Mathias para me desculpar, não mesmo. Ele foi longe demais, mexeu com meu ponto fraco, a vida, ele não sabia nem um terço de tudo que eu tinha vivido para agir dessa forma, para me aconselhar como se fosse minha mãe.
Guardei a maquiagem e saí do banheiro.
Era inacreditável. Porque diabos Ricardo estava parado ali na porta?
- O que você tem? - perguntou.
Que ótimo, mais uma pessoa para tentar saber o que se passava comigo.
- E o que você tem a ver com isso? - cuspi as palavras nele.
- Eu me preocupo com você! - aproximou-se de mim.
- Ah, conta outra piada agora, por que essa não teve graça.
Colocou os braços na parede atrás de mim fazendo com que eu ficasse presa entre eles.
- Pelo amor dos deuses, Ricardo, qual é o teu problema? Você passou três vezes, praticamente do meu lado e não olhou na minha cara, agora você vem dizer que se preocupa, vai para o meio do inferno - tentei me desvencilhar de seus braços.
- Porque você nunca acredita em mim, Anita? - parecia suplicar, mas que imbecil.
- Porque você está bêbado. Me deixa sair! Empurrei-o, mas ele não me largou, minha força fez com que ele apertasse mais os braços ao meu redor como uma jibóia louca.
- Hey Ricardo, solta ela, cara!
Era Mathias atrás dele, chegou como se fosse o príncipe salvador da pátria. Que coisa asquerosa!
- Ela quer ficar aqui - Ricardo berrou.
- Não, eu não quero - gritei mais alto que os dois. - E também não preciso de ajuda Mathias, eu me entendo com ele.
- Ah, cala essa boca, Anita - falou isso e puxou Ricardo que me puxou pelo vestido.
As mãos de Ricardo só afrouxaram de meu vestido quando Mathias o segurou pela camisa e gritou para que me soltasse. Eu estava perplexa com tudo aquilo, não sabia como agir, inconscientemente parei atrás de Mathias, enquanto ele berrava ameaças a Ricardo que em nenhum momento desgrudou os olhos dos meus.
- Vem! - ordenou Mathias me arrastando dali.
Meus olhos também não abandonavam os de Ricardo, era como estar presa a um caleidoscópio. Não tinha visto que Mathias já o tinha largado, só obedeci ao que a voz dele dizia e segui seus passos olhando para trás sem conseguir tirar meus olhos daqueles olhos verdes.
- Pronto! Você pode me soltar agora - sorriu tão calmo como se nada tivesse acontecido.
Meus dedos estavam agarrados tão fortemente em sua camiseta que quando soltei a marca deles permaneceu. Mathias puxou uma cadeira e eu me sentei.
- Ah, me desculpe - quase doía dizer isso a ele.
- Não foi nada. Você está bem? - havia preocupação de verdade na sua voz.
- Estou. Não, não estou - não poderia mentir agora. – Ele me assusta.
- Ele não vai voltar, pelo menos não essa noite - arrastou minha cadeira pra perto da dele e pousou o braço sobre meus ombros.
- Obrigada - sorri.
Nós ficamos sentados em silêncio por alguns minutos, até recompormos nossas mentes. O braço dele continuava sobre meus ombros, encostei-me nele e pude sentir seu suspirar quando apoiou o rosto em minha cabeça. Separei uma mexa de cabelo e comecei a enrolar devagar.
- Por que você sempre faz isso? - perguntou.
- Para dar corda nos meus neurônios.
Seu riso foi breve, ainda suspirava de forma preocupada.
- O que foi? - perguntei virando o rosto para ele.
- Você sabe do que se livrou antes?
- Dos seus amigos?! - queria que ele risse.
- É sério, Anita. Você sabe do que eu estou falando - o rosto dele ficou mais preocupado ainda.
Eu não conseguia ver qual era a real gravidade de tudo aquilo, Ricardo tentou me agarrar, Mathias fez com que ele caísse fora e ponto final, não havia algo tão ruim naquilo tudo.
- Ricardo? O que ele poderia fazer de tão grave? - o mistério da conversa me afligia.
- Ricardo é um verme!
Fiz uma careta para ele, não entendia o ódio que ele demonstrava sentir enquanto falava.
- Ah, você não sabe mesmo - afirmou.
- Vai me contar ou o vou ter que ir embora para pesquisar no Google? - saí de baixo dos seus braços e sentei de frente para ele.
- Ano passado, antes de você começar o estágio, Ricardo foi acusado de abuso sexual - eu via a repulsa nos olhos de Mathias. - Não sei exatamente onde e como foi, a única coisa que ficamos sabendo é que ele realmente era culpado e ninguém duvidou disso, pois todo mundo sabia que ele bebia demais e, eventualmente drogava-se.
As órbitas dos meus olhos quase caíram para fora. A estranheza de Ricardo não era novidade para ninguém, mas enlouquecer e abusar sexualmente de alguém era mais que estranheza, era doença.
- Ele não foi preso? - eu estava chocada.
- Foi, mas logo foi solto, os pais dele são ricos, não deve ter passado uma noite na cadeia. O assunto é proibido dentro da agência, porque como você deve saber Ricardo é filho dos donos.
- Eu não sabia, não fazia a menor idéia, não sabia de nada disso.
Era esse o motivo de todo o mistério, Ricardo não queria que eu descobrisse o passado dele, por isso sumia quando eu perguntava algo que pudesse entregar tudo. As poucas vezes que o encontrei na agência contou-me alguma história sobre divulgação de shows e foi embora. Esse era o x da questão, o passado.
- Então era isso! - exclamei.
- Isso o quê? - perguntou Mathias.
- Era por isso que ele fugia de toda e qualquer pergunta que eu fazia - isso não era bem uma resposta a Mathias, mas sim uma resposta a mim mesma.
- Há quanto tempo você conversa com esse monstro? - perguntou assustado.
- Sei lá, antes da agência ainda. Ele sempre freqüentou os mesmos lugares que eu, mas a gente não conversava muito, não sei como explicar, alguma coisa sempre me repelia dele, foram sempre conversas curtas e se ele não fugisse com alguma pergunta minha, eu sentia um medo inexplicável e desaparecia antes que ele pudesse responder.
A confusão que passou pelos olhos me Mathias não era a metade da confusão que se debatia dentro de minha cabeça.
- Essa foi a primeira vez que ele tentou te pegar a força?
- Foi e acho que ele não me machucaria - disse.
- Por quê? Iria bater nele? - zombou.
- Não - estava pensando demais para rir das piadinhas dele. - Ele gosta de mim.
Mathias pareceu chocado, seu rosto ficou severo como se tivesse ouvido um insulto.
- Gosta de você? Ele te persegue, te observa enquanto você trabalha, ninguém me contou eu o vi parado no corredor olhando para você. Vai dizer que nunca o viu lá parado feito um ás de paus? - esbravejou.
[Continua...]
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